domingo, 24 de maio de 2009

O julgamento de Colombo


Nas comemorações do quinto centenário da descoberta da América, a imagem de Cristóvão Colombooscila entre herói e bandido



O Cristóvão Colombo que navega pelos livros escolares descobre a América mas não excita a imaginação de ninguém. É que o Colombo dos manuais, com aquele chapéu de veludo, cercado de marinheiros e índios, como aparece nas gravuras, não chega a ter contornos humanos. Sua expedição, que chegou à América no dia 12 de outubro de 1492, também parece uma viagem dentro da névoa, mesmo que se possa compará-la com a aventura das modernas viagens espaciais. Para quem sempre bocejou diante desse Colombo enfadonho, vem aí um bem mais curioso, mais polêmico, cheio de inimigos, coberto de ataques e até de insultos.

As comemorações antecipadas do quinto centenário de sua viagem com os navios Santa Maria, Pinta e Niña, que começam neste sábado, é estão que colocando o Colombo dos manuais para dormir. À medida que a festa se aproxima, discutem-se cada vez mais as conseqüências - principalmente as ruinosas - de sua aventura na América. O genovês Colombo, que fez outras três viagens posteriores ao continente americano, não está sendo apenas dissecado. Está sendo julgado. O que se procura estabelecer é se ele deve ser celebrado como um herói ou se é mais correto lembrá-lo como um bandido, responsável pelo processo de colonização européia na América, que culminou com o extermínio em massa de milhões de indígenas.

"Perto do que Cristóvão Colombo fez com os índios americanos, Hitler parece um delinqüente juvenil", afirma Russell Means, membro do Movimento Indígena Americano. Pode parecer uma afirmação exagerada e injusta, e evidentemente o é, mas são coisas desse calibre que os críticos estão atirando contra Colombo. Descrito pelo filho ilegítimo Fernando, autor de sua primeira biografia, como um homem encorpado, de estatura maior do que a média, olhos azuis e cabelos precocemente embranquecidos, Colombo nunca foi retratado em vida e portanto sua fisionomia variou conforme a imaginação dos artistas que o pintaram. O julgamento sobre sua personalidade também. Cada época teve um Colombo à sua maneira. O papa Pio IX quis santificá-lo no século passado. Os humores agora são outros. Há gente querendo crucificar o navegador, pela sua cobiça, suas crendices religiosas, seus preconceitos típicos da época em que viveu.

Dois grupos disputam o direito de dar a palavra final sobre a viagem pioneira à América. De um lado, estão os governos, empresas e instituições oficiais dos países diretamente ligados ao navegador genovês - estes querem fazer do quinto centenário uma festa inesquecível. Do outro lado, estão entidades alternativas, representantes dos índios, toda a ala esquerdista dos religiosos católicos e protestantes das três Américas, intelectuais radicais de ambos os continentes e até feministas. Nenhum dos dois grupos se constrange com o fato de a história de Colombo ser frustrantemente incompleta e cheia de mitos. Afirma-se, por exemplo, que ele teve de provar aos reis de Espanha que a Terra era redonda (o que as pessoas educadas da época já sabiam) ou que a rainha Isabel teve de penhorar suas jóias para pagar a viagem (os reis simplesmente cobraram da cidade de Palos uma multa antiga e, como pagamento, obrigaram a municipalidade a equipar os navios em que Colombo viajaria).

As pessoas que estão em campanha pela condenação do navegador, com certeza, vão desconsiderar que Colombo, pelo que se conclui da leitura do seu diário de bordo, das cartas enviadas aos reis de Espanha e do testamento que deixou, era um produto de sua época. Esses textos, descobertos no século passado e sobre cuja autenticidade chegou-se a levantar dúvidas, são hoje aceitos integralmente como do navegador - aliás, são os únicos documentos de sua autoria que chegaram à modernidade, com exceção de algumas anotações, nas margens dos únicos cinco livros de sua enorme biblioteca que lograram sobreviver.

Eles mostram que Colombo odiava sinceramente os árabes por terem interrompido as trilhas de comércio por terra que os europeus tinham com as índias. Era católico fanático numa época em que a Inquisição estava no apogeu. No mês em que partiu do Porto de Palos, 8.000 judeus foram expatriados dali mesmo por ordem do inquisidor-geral, o temível Torquemada. Certamente, Colombo teria muita honra em beijar as mãos santas do inquisidor por esse e outros feitos semelhantes. No mesmo ano em que o vento estufou as velas da Santa Maria, era eleito papa, com o nome de Alexandre VI, um nobre devasso, dado a orgias homossexuais, chamado Rodrigo Borgia. Colombo teria honra em tomar-lhe a bênção também.

Ele chegou, no intervalo entre sua terceira e a última viagem à América, a recorrer ao papa com um pedido estranho. Queria nada menos do que a permissão de sua santidade para entrar no paraíso terrestre - que para ele era a foz do Rio Orinoco, na Venezuela, que ele havia descoberto. "Santo Isidro, Beda, Strabo, o mestre da história escolástica, Santo Ambrósio, Scoto e todos os teólogos concordam que o paraíso terrestre se encontra no Oriente", escreveu Colombo numa carta aos reis de Espanha, Isabel e Fernando. O papa deu a permissão.

Todos esses fatos constrangedores aguçam o interesse pela figura de Colombo e por suas expedições, mas será um equívoco dar mais atenção a eles do que a tudo o que o navegador fez de positivo e de ousado. Para começar, foi um gênio como navegador. Intuía sua posição no mar apenas olhando a posição dos astros no céu, com uma precisão que até hoje espanta os estudiosos. Tinha tanta confiança nas suas habilidades de marinheiro que se valia de um. único instrumento de direção, o quadrante, desprezando a bússola e o astrolábio, comumente utilizados na época. A viagem que tez era uma proeza quase inimaginável quando ele a realizou - e a idéia partiu apenas dele. Durante oito anos, com uma determinação impressionante, saiu de papiros na mão tentando convencer reis e rainhas de que era possível chegar às índias navegando no rumo oeste.

No bicentenário da Revolução Francesa, em 1989, o debate ficou restrito aos intelectuais e a festa em si empolgou muito pouco as pessoas fora da França. O centenário da abolição da escravatura no Brasil, comemorado há três anos, também não deverá ser lembrado pelos protestos dos grupos negros. O embate dos 500 anos da viagem de Colombo está sendo mais pirotécnico. O governo espanhol vai fazer coincidir com o ano das comemorações a realização da Feira Mundial, em Sevilha, cujos pavilhões lembram na arquitetura as caravelas dos descobridores espanhóis. Réplicas em tamanho natural da Santa Maria, Pinta e Niña serão lançadas ao mar neste sábado, dia 12, para repetir a gloriosa viagem de Colombo. Na Itália, a prefeitura de Gênova armou também uma exposição e espera a presença de 2 milhões de visitantes à terra natal de Cristóvão Colombo. Nos Estados Unidos, além de uma série exibida pela televisão que recria de modo realista a aventura da descoberta do Novo Mundo, começam a ser vendidos adesivos, camisetas, miniaturas das caravelas e pôsteres de Colombo. Estátuas do navegador serão erguidas em diversas cidades. Onde houver sinais de festa vão haver também sinais de fumaça, pintura e danças de guerra promovidas pelos grupos que não vêem motivos para comemorar. A oposição começa em casa.

"A Espanha precisa se reconciliar com a verdade histórica e entender que a passagem dos conquistadores pelas terras americanas matou 75 milhões de indígenas", diz o prefeito socialista de Puerto Real, uma pequena cidade do sul da Espanha que vai erguer um monumento contra Colombo. No dia 12, a cidade vai receber uma delegação de nativos americanos que declaradamente estará lá para, em protesto formal, "descobrir a Espanha".

A onda de protestos tem crescido tanto de tom que se poderia temer por um atentado ao túmulo de Colombo - como as agressões contra o mausoléu de Lênin, em Moscou, ou o de Karl Marx, em Londres. O perigo está afastado. Colombo morreu criticado pelos seus contemporâneos e quase esquecido em Valladolid catorze anos depois de sua inédita viagem, mas ninguém sabe onde está enterrado. "Colombo foi um aventureiro, cego de ambição por fama e riqueza cujo legado à população que o acolheu foi a rapinagem de suas terras", escreveu o americano Kirkpatrick Sale no livro A Conquista do Paraíso, que, publicado no ano passado, transformou-se na bíblia da contestação à data. A ala esquerdista do clero juntou sua voz ao coro dos grupos indígenas. O Conselho Nacional de Igrejas dos Estados Unidos, uma organização protestante, lançou um documento de condenação ao feito de Colombo: "Não é hora de júbilo, mas de penitência".

O primeiro julgamento de Colombo foi feito ainda em vida por seus contemporâneos e o veredicto foi o esquecimento. Na virada do século XV, a fama do navegador quase desapareceu, enquanto crescia a notoriedade de Américo Vespúcio, italiano como ele, mas navegando sob bandeira portuguesa, que dominara as atenções pelas suas descobertas de terras firmes na América do Sul e também pelos seus relatos generosos e cativantes sobre o Novo Mundo. Américo Vespúcio deu nome à América inteira, enquanto a Colombo coube batizar apenas um país, a Colômbia. Nisso. teve má sorte.

Em 1507, um ano depois da morte de Colombo, circulava na Alemanha o primeiro mapa do Novo Mundo em que as terras recém-descobertas são chamadas de América. Na mesma época, a corte espanhola já se deliciava com conquistas bem mais recompensadoras do que as do genovês. Cortés, que subjugou os astecas do México, e Pizarro, que dominou os incas, no Peru, haviam descoberto não um punhado de ilhotas, mas terra firme e realmente coberta de ouro. Ao mesmo tempo, começavam a varrer a Europa as notícias das conquistas portuguesas, a quem Colombo deve boa parte senão todo seu aprendizado marítimo. Pedro Álvares Cabral chegara ao Brasil em 1500. Vasco da Gama chegou realmente às índias em 1498 e a expedição de Fernão Magalhães circunavegara o globo não apenas provando de forma irrefutável sua forma esférica, mas ajudando a evidenciar ainda mais o erro de Colombo em julgar que chegara à Ásia.

O prestígio de Cristóvão Colombo renasceu em meados do século XVI. No primeiro centenário de sua viagem, em 1592 - ano em que William Shakespeare escreveu Ricardo III e Galileu Galilei publica seus trabalhos sobre mecânica -, Colombo estava de volta ao pódio dos desbravadores. "Excluindo a encarnação de Cristo e a criação do mundo, a descoberta da América por Colombo é o evento mais extraordinário da História humana", escreveu na época o historiador Francisco Lópes de Gómara, que o define como um sábio de estirpe grega, perfil que duraria mais de 200 anos.Quem falasse em julgá-lo mal compraria enorme briga nos Estados Unidos nos anos que se seguiram à guerra patriótica de Independência. Nos 700 e nos 800, a América o descobriu. O cadáver do navegador naqueles anos deve ter se acomodado melhor no túmulo, onde quer que esteja enterrado. Colombo, que se julgava um enviado de Deus ("Ele me fez seu mensageiro", escreveu no seu diário), deveria sentir-se lisonjeado com a proposta de um certo Samuel Sewali, cidadão americano morador de Boston. Ele defendeu a mudança de nome da América para Colúmbia, numa forma de fazer justiça "ao escolhido de Deus para nos apontar essas terras". Foi quase imediata a identificação de Colombo com o ideal americano do homem que fugiu da opressão religiosa e política da Inglaterra. No final do século passado, finalmente, o descobridor da América quase chegou aos altares. Por pressão dos católicos irlandeses e franceses, o papa Pio IX esteve a ponto de beatificá-lo. Justificava-se essa homenagem por ele ter levado "a cristandade para metade da humanidade". O processo parou porque Colombo, além de não ter feito nenhum milagre comprovado, teve um filho - o seu biógrafo Fernando - com Beatriz Enriquez de Aranha, sem casar-se com ela. Nessa situação de pecado, conforme a regra católica, foi desclassificado pelo Vaticano.

Neste quinto centenário da viagem de Colombo, seus críticos nada perderiam se lembrassem que as comemorações anteriores serviram muito mais como uma radiografia dos homens de cada época. Foram mais úteis para revelar suas idéias, preconceitos e crenças, quando se puseram a julgar o navegador genovês, do que para definir as qualidades ou defeitos do próprio Colombo. Será uma pena se mais um centenário for comemorado dessa maneira, com a substituição de um Colombo mitológico santificado por outro nefasto - mas igualmente produto das distorções culturais de uma época. Colombo esteve envolvido em crueldades contra os indígenas da América, obcecou-se pela busca do ouro, foi ingênuo na visão que teve do continente descoberto, que para ele era uma espécie de portal do paraíso. Nesses pontos, existe um Colombo vulnerável às críticas. Mas há também o Grande Navegador, o maior almirante de todos os tempos, que navegou sem carta e condenou os mapas da época à cesta de lixo. Derrubou uma das mais antigas e resistentes convicções geográficas de todos os tempos - a do grego Ptolomeu, para quem o mundo acabava logo depois da Europa. Para benefício geral, seria conveniente que terminasse, neste quinto centenário, o hábito de tomar Colombo por santo ou por demônio, aceitando a convivência dos contrastes que inevitavelmente marcam toda personalidade histórica.

Nesse site encontra-se uma breve histórico da vida de Colombo http://www.popa.com.br/docs/cronicas/colombo/index.htm
Ver tambem esse texto que fala do mito desconstruído de Cristóvão Colombo: http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/98.pdf




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