terça-feira, 24 de abril de 2007

TRABALHO EM GRUPO SOBRE O INDIO




Depois de estudar sobre etnocentrismo agora vamos fazer um estudo sobre a representação dos indios em alguns autores de livros didaticos.



Primeiro passo(para refletir)

OBS: nao precisa redigir resposta sobre essas questões.

Escolher dois livros didaticos e observar atentamente:
1) Que características dos indios são destacadas pelos autores?
2) Como os autores tratam a relação entre brancos e indios.
3) Como percebem a presença indigena na cultura brasileira.
4) Existe estereótipo no tratamento dos autores?
5) Que imagens os autores dos livros destacaram para ilustrar o texto?


Segundo passo:

Observar essas questões e após uma discussão com o grupo redigir um texto sobre a pesquisa.

Terceiro passo:

Exposição


Quarto passo (obrigatorio):
Cada grupo deverá fazer uma questão para o grupo que estiver expondo.

sábado, 21 de abril de 2007

O RATO ROEU O QUEIJO DO REI




Saiba o que fiquei sabendo para que, a despeito de tudo, você continue a amar a democracia

A democracia , eu sempre amei. Mas, de repente, relendo uma fábula antiga, tive iluminação zen: meu saber afetivo transformou-se em saber filosófico; sei agora as razões por que amo a democracia. E, nesse momento em que o transbordamento fecal de Brasília e a sua fedentina fazem com que os de memória curta comecem a ter saudades do regime militar, acho importante que você, leitor, saiba o que fiquei sabendo para que, a despeito de tudo, você continue a amar a democracia.
Assim, passo a contar-lhe a mesma história que eu contava à minha neta no momento da iluminação:
"Havia, outrora, num país distante, um rei que amava os queijos acima de quaisquer outros prazeres. O seu amor pelos queijos era tão grande que ele mandou vir, de todas as partes do mundo, os mais renomados especialistas em queijo, aos quais foram oferecidos recursos não só para continuar a fabricação dos queijos já conhecidos, como para que se dedicassem à pesquisa de novos queijos, para assim alargar as fronteiras da ciência, da técnica e da gula.
Ficaram famosos os queijos fabricados com leite de baleia e leite de unicórnio, estes últimos procuradíssimos pelas suas virtudes afrodisíacas. O palácio do rei era um enorme depósito de queijos de todas as qualidades.
O país tornou-se famoso e enriqueceu com a exportação de queijos. O seu cheiro atravessava os mares. Universidades foram criadas com o objetivo de desenvolver a ciência dos queijos. Houve mesmo uma escola teológica que concluiu que o santo sacramento da eucaristia não foi primeiro celebrado com pão e vinho, mas com queijo e vinho.
Aconteceu, entretanto, que, além do rei e do povo, havia outros seres no reino que também gostavam de queijo: os ratos. Atraídos pelo cheiro que saía do palácio, mudaram-se para lá aos milhares e passaram, imediatamente, a banquetear-se com os queijos reais.
Os ratos comiam e se multiplicavam. Tomaram todos os lugares: armários, gavetas, canastras, camas, sofás, cozinha, cofres e até mesmo a barba do rei. O rei passou a ser morada de ratos.
Mas o pior de tudo era que os ratos tinham de expelir por uma extremidade o que haviam engolido pela outra e, à medida que andavam, espalhavam pelo palácio um rastro de minúsculos cocozinhos, durinhos e malcheirosos. Furioso, o rei chamou os seus ministros e perguntou-lhes: "Que fazer para nos livrarmos dos ratos?" Eles responderam: "É fácil, majestade. Basta trazer os gatos".
O rei ficou felicíssimo com idéia tão brilhante e mandou trazer uma centena de gatos para dar cabo dos ratos.
Os ratos, ao verem os gatos, fugiram espavoridos. Foram-se os ratos, ficaram os gatos, que encheram o palácio. À semelhança dos ratos, os gatos comiam tudo o que viam e, compelidos pelas mesmas exigências fisiológicas que moviam os roedores, cobriram os brilhantes pisos do palácio com seus cocôs.
Furibundo, o rei chamou os seus ministros e perguntou-lhes o que fazer para se livrarem dos gatos. E eles responderam: "Fácil, majestade. Basta trazer os cachorros". Vieram cachorros de todos os tipos e tamanhos. Os gatos, ao verem os cachorros, fugiram espavoridos. Foram-se os gatos, ficaram os cachorros, que encheram o palácio. E a história se repetiu. Ao final, havia cocô de cachorro por todo o palácio. Apoplético, o rei chamou os seus ministros e perguntou-lhes: "Que fazer para nos livrarmos dos cachorros?" E eles responderam: "É fácil, majestade. Basta trazer os leões".
Vieram os leões com suas jubas e urros. Os cachorros, ao os verem chegar, fugiram em desabalada carreira. Foram-se os cachorros, ficaram os leões. Mas os leões não só comiam cem vezes mais, como defecavam cem vezes mais que os camundongos. O Tesouro real entrou em crise. O dinheiro não chegava para pagar a carne que os leões comiam. E para pagar os catadores de cocô, que ameaçaram entrar em greve.
Desesperado, o rei chamou os seus ministros e perguntou o que fazer para que se livrassem dos leões. E eles responderam: "Basta trazer os elefantes".
Foram-se os leões, ficaram os elefantes. Enormes, eles comiam montanhas e defecavam montanhas. A fedentina encheu o reino e atravessou os mares. Em depressão, o rei chamou seus ministros e perguntou, com voz sumida: "Que fazer para nos livrarmos dos elefantes?'
Os ministros lembraram-se, então, de que os elefantes, que nada temem, estremecem de medo ao ver um rato. E responderam, em coro: "É fácil, majestade. Basta trazer os ratos!" E assim foi feito. Voltaram os ratos, foram-se os elefantes. E o rei e todos os habitantes do palácio passaram sorridentemente a conviver com os ratos e seu cocô."
O dia chegará em que minha neta terá crescido. Não mais lhe contarei histórias. Ela aprenderá sobre a política. Quererá visitar o Congresso Nacional, símbolo da democracia. Notará, espantada, que os prédios estão cheios de cocô de ratos. Me dirá, espantada: "Vovô, deve haver muitos ratos por aqui!" Eu responderei: "Sim, muitos". E ela me perguntará: "Por que não trazem os gatos para acabar com os ratos?" Então eu lhe contarei de novo a história e direi: "Aprenda a grande lição da democracia: é preferível cocô de rato ao de elefante."

segunda-feira, 16 de abril de 2007

A VIDA POLÍTICA (Continuação)

Marilena Chauí

O poder despótico

Nas realezas existentes antes dos gregos, nos territórios que viriam a formar a
Grécia – realezas micênicas e cretenses -, bem como as que existiam nos
territórios que viriam a formar Roma – realezas etruscas -, assim como nos
grandes impérios orientais – Pérsia, Egito, Babilônia, Índia, China – vigorava o
poder despótico ou patriarcal .
Em grego, despotes, e, em latim, pater-familias, o patriarca, é o chefe de
famíliaxiv cuja vontade absoluta é a lei: “Aquilo que apraz ao rei tem força de
lei”. O poder era exercido por um chefe de família ou de famílias (clã, tribo,
aldeia), cuja autoridade era pessoal e arbitrária, decidindo sobre a vida e a morte
de todos os membros do grupo, sobre a posse e a distribuição das riquezas, a
guerra e a paz, as alianças (em geral sob a forma de casamentos), o proibido e o
permitido.
Embora, de fato, a origem desse poder estivesse na propriedade da terra e dos
rebanhos, sendo chefe o detentor da riqueza, procurava-se garanti-lo contra
revoltas e desobediências afirmando-se uma origem sobrenatural e divina para
ele. Aparecendo como designado pelos deuses e desejado por eles, o detentor do
poder também era detentor do privilégio de relacionar-se diretamente com o
divino ou com o sagrado, concentrando em suas mãos a autoridade religiosa.
Por sua riqueza, autoridade religiosa e posse de armas, o detentor do poder era
também chefe militar, concentrando em suas mãos a chefia dos exércitos e a
decisão sobre a guerra e a paz. Era comandante.
O chefe era um senhor, enfeixando em suas mãos a propriedade do solo e tudo
quanto nele houvesse (portanto, a riqueza do grupo), a autoridade religiosa e
militar, sendo, por isso, rei, sacerdote e capitão.
Com o crescimento demográfico (através das alianças pelos casamentos entre
famílias régias), a expansão territorial (através das guerras de conquista), a
divisão social do trabalho (através da escravização dos vencidos de guerra e das
funções domésticas das mulheres) e os acordos militares e navais entre grupos, a
autoridade, embora concentrada nas mãos do rei, passa a ser delegada por ele a
seus representantes (em geral, membros de sua família e das famílias aliadas).
Surge, assim, uma repartição das funções de direção ou de poder: a casta
sacerdotal detém a autoridade religiosa e a dos guerreiros, a militar. Senhores das
terras, dos escravos, das mulheres, das armas e dos deuses, os grupos detentores
da autoridade formavam a classe dominante economicamente e dirigente da
comunidade, sob o poder do rei, ao qual prestavam juramento de lealdade e
pagavam tributo pelo usufruto das terras pertencentes a ele e por ele cedidas aos
demais.
A propriedade da terra e de seus produtos existia sob duas formas principais:
1. como propriedade privada do rei e, portanto, como domínio pessoal do chefe
ou patriarca. Esse patrimônio ou propriedade patrimonial era cedido, segundo a
vontade arbitrária do rei, aos chefes de clãs e tribos, aos grupos sacerdotais e
militares, mediante serviços e/ou tributos. Em geral, esse tipo de propriedade
prevalecia naquelas regiões em que o cultivo da terra exigia trabalhos imensos de
irrigação e de transporte de água, que um proprietário isolado não poderia
realizar, não só por lhe faltarem recursos para isso como também porque teria
que atravessar terras de outros proprietários, devendo pagar-lhes tributos ou
fazer-lhes guerra. A propriedade, ficando na posse do rei, permitia que este
usasse os recursos vindos dos tributos para as grandes obras de irrigação e
transporte de águas, ao mesmo tempo em que possuía o poder para atravessar
toda e qualquer terra para realizar as obras;
2. como propriedade coletiva das aldeias ou propriedade comunal do chefe da
aldeia, que pagava tributos ao rei em troca de proteção, submetendo-se ao poder
régio e, portanto, à autoridade religiosa e militar do senhor.
Seja num caso como noutro, o rei era forçado a exercer um controle cerrado
sobre as chefias locais e sobre os que usufruíam as terras, pois as rebeliões eram
freqüentes e a disputa pelo poder interminável. Tal controle era feito por
representantes do rei, quando percorriam as terras registrando a produção e
recolhendo tributos, punindo crimes cometidos contra as decisões e decretos
régios, sufocando revoltas e impedindo o surgimento de federações e
confederações de aldeias.
Com isso, o rei passou a ter uma imensa burocracia e imensos exércitos,
custeados pelos chefes locais e suas aldeias. Os funcionários régios precisavam
saber ler, escrever e contar. Nas sociedades de que falamos, tais conhecimentos
eram privilégio de um grupo, os sacerdotes. Por esse motivo, a ênfase no caráter
sagrado ou religioso do poder tendia a aumentar à medida que aumentava o
poderio sacerdotal, sustentáculo indispensável do poder régio. Deuses e armas
eram os pilares da autoridade.
Assim constituído, o poder possuía as seguintes características:
? despótico ou patriarcal: era exercido pelo chefe de família sobre um conjunto
de famílias a ele ligadas por laços de dependência econômica e militar, por
alianças matrimoniais, numa relação pessoal em que o chefe garantia proteção e
os súditos ofereciam lealdade e obediência, jurando cumprir a vontade do
primeiro;
? total : o detentor da autoridade possuía poder supremo inquestionável para
decidir quanto ao permitido e ao proibido (a lei exprime a vontade pessoal do
chefe), para estabelecer os vínculos com o sagrado, isto é, com os deuses e
antepassados (o chefe detém o poder religioso), para decidir quanto à guerra e à
paz (o chefe detém o poder militar). A tomada de decisão cabia exclusivamente
ao rei. Este possuía conselheiros (sacerdotes e militares), que o informavam e lhe
sugeriam condutas e ações, mas a decisão cabia apenas a ele. O conselho era
secreto, os motivos de uma decisão eram secretos, o que se passava entre o rei e
seus conselheiros era secreto. Somente a decisão tornava-se pública, sob a forma
de um decreto real;
? incorporado ou corporificado: o detentor do poder figurava em seu próprio
corpo as características do poder, apresentando-se como manifestação da própria
comunidade. Sua cabeça encarnava a autoridade que dirige, seu peito encarnava a
vontade que ordena, seus membros superiores encarnavam os delegados que o
representavam (sacerdotes e militares), seus membros inferiores encarnavam os
súditos que o obedeciam. Essa figuração do poder no corpo do próprio rei
indicava a existência de uma organização social fortemente hierarquizada, na
qual cada indivíduo possuía um lugar fixo e predeterminado, só tendo existência
social graças a esse lugar. O corpo do rei permitia não só figurar a hierarquia,
mas também a forte centralização da autoridade, concentrada na cabeça e no
peito do dirigente;
? mágico: por receber a autoridade dos deuses, o detentor do poder possuía força
sobrenatural ou mágica. Sua palavra era um comando misterioso que fazia existir
aquilo que era dito (o rei dizia “faça-se” e as coisas aconteciam simplesmente
porque ele as havia dito e desejado); seus gestos e desejos tinham força para
matar e curar, sua maldição destruía tudo quanto fosse amaldiçoado por ele, dele
dependiam a fertilidade da terra, a vitória ou a derrota na guerra, o início ou o fim
de uma peste, fenômenos meteorológicos, cataclismos;
? transcendente: por ser de origem divina, o rei era divinizado e acreditava-se
em sua imortalidade como condição da preservação da comunidade. Essa
divinização o colocava acima e fora da comunidade. Tal separação levava a
considerar que o dirigente ocupava um lugar transcendente, graças ao qual via
tudo, sabia tudo e podia tudo, tendo o império total sobre a comunidade;
? hereditário: era transmitido ao primogênito do rei ou, na falta deste, a um
membro da família real. A família reinante constituía uma linhagem e uma
dinastia, que só findava ou por falta de herdeiros diretos ou por usurpação do
poder por uma outra família, que dava início a uma nova linhagem ou dinastia.
A invenção da política
Quando se afirma que os gregos e romanos inventaram a política, o que se diz é
que desfizeram aquelas características da autoridade e do poder. Embora, nos
começos, gregos e romanos tivessem conhecido a organização econômico-social
de tipo despótico ou patriarcal, um conjunto de medidas foram tomadas pelos
primeiros dirigentes – os legisladores – de modo a impedir a concentração dos
poderes e da autoridade nas mãos de um rei, senhor da terra, da justiça e das
armas, representante da divindade.
A propriedade da terra não se tornou propriedade régia ou patrimônio privado do
rei, nem se tornou propriedade comunal ou da aldeia, mas manteve -se como
propriedade de famílias independentes, cuja peculiaridade estava em não
formarem uma casta fechada sobre si mesma, porém aberta à incorporação de
novas famílias e de indivíduos ou não-proprietários enriquecidos no comércio.
Apesar das diferenças históricas na formação da Grécia e de Roma, há três
aspectos comuns a ambas e decisivos para a invenção da política. O primeiro,
como assinalamos há pouco, é a forma da propriedade da terra; o segundo, o
fenômeno da urbanização; e o terceiro, o modo de divisão territorial das cidades.
Como a propriedade da terra não pertencia à aldeia nem ao rei, mas às famílias
independentes, e como as guerras ampliavam o contingente de escravos, formouse
na Grécia e em Roma uma camada pobre de camponeses que migraram para as
aldeias, ali se estabeleceram como artesãos e comerciantes, prosperaram,
fizeram, das aldeias, cidades, passaram a disputar o direito ao poder com as
grandes famílias agrárias. Uma lut a de classes perpassa a história grega e romana
exigindo solução.
A urbanização significou uma complexa rede de relações econômicas e sociais
que colocava em confronto não só proprietários agrários, de um lado, e artesãos e
comerciantes, de outro, mas também a massa de assalariados da população
urbana, os não-proprietários, genericamente chamados de “os pobres”.
A luta de classes incluía, assim, lutas entre os ricos e lutas entre ricos e pobres.
Tais lutas eram decorrentes do fato de que todos os indivíduos participavam das
guerras externas, tanto para a expansão territorial, quanto para a defesa de sua
cidade, formando as milícias dos nativos da cidade. Essa participação militar
fazia com que todos se julgassem no direito, de algum modo, de intervir nas
decisões econômicas e legais das cidades. A luta das classes pedia uma solução.
Essa solução foi a política.
Finalmente, os primeiros chefes políticos ou legisladores introduziram uma
divisão territorial das cidades que visava a diminuir o poderio das famílias ricas
agrárias, dos artesãos e comerciantes urbanos ricos e à satisfazer a reivindicação
dos camponeses pobres e dos artesãos e assalariados urbanos pobres. Em Atenas,
por exemplo, a polis foi subdividida em unidades sociopolíticas denominadas
demos; em Roma, em tribus.
Quem nascesse num demos ou numa tribus, independentemente de sua situação
econômica, tinha assegurado o direito de participar das decisões da cidade. No
caso de Atenas, todos os naturais do demos tinham o direito de participar
diretamente do poder, donde o regime ser uma democracia. Em Roma, os nãoproprietários
ou os pobres formavam a plebe, que tinha o direito de eleger um
representante – o tribuno da plebe – para defender e garantir os interesses plebeus
junto aos interesses e privilégios dos que participavam diretamente do poder, os
patrícios, que constituíam o populus romanus. O regime político romano era,
assim, uma oligarquia.
Diante do poder despótico, gregos e romanos inventaram o poder político
porque:
? separaram a autoridade pessoal privada do chefe de família – senhorio
patriarcal e patrimonial – e o poder impessoal público, pertencente à
coletividade; separaram privado e público e impediram a identificação do poder
político com a pessoa do governante. Os postos de governo eram preenchidos por
eleições entre os cidadãos, de modo que o poder deixou de ser hereditário;
? separaram autoridade militar e poder civil, subordinando a primeira ao
segundo. Isso não significa que em certos casos, como em Esparta e Roma, o
poder político não fosse também um poder militar, mas sim que as missões
militares deviam ser, primeiro, discutidas e aprovadas pela autoridade política e
só depois realizadas. Os chefes militares não eram vitalícios nem seus cargos
eram hereditários, mas eram eleitos periodicamente pelas assembléias dos
cidadãos;
? separaram autoridade mágico-religiosa e poder temporal laico, impedindo a
divinização dos governantes. Isso não significa que o poder político deixasse de
ter laços com a autoridade religiosa – os oráculos, na Grécia, e os augúrios, em
Roma, eram respeitados firmemente pelo poder político. Significa, porém, que os
dirigentes desejavam a aprovação e a proteção dos deuses, sem que isso
implicasse a divinização dos governantes e a submissão da política à autoridade
sacerdotal;
? criaram a idéia e a prática da lei como expressão de uma vontade coletiva e
pública, definidora dos direitos e deveres para todos os cidadãos, impedindo que
fosse confundida com a vontade pessoal de um governante. Ao criarem a lei e o
direito, afirmaram a diferença entre o poder político e todos os outros poderes e
autoridades existentes na sociedade, pois conferiram a uma instância impessoal e
coletiva o direito exclusivo ao uso da força para punir crimes, reprimir revoltas e
matar para vingar, em nome da coletividade, um delito julgado intolerável por
ela. Em outras palavras, retiraram dos indivíduos o direito de fazer justiça com as
próprias mãos e de vingar por si mesmos uma ofensa ou um crime. O monopólio
da força, da vingança e da violência passou para o Estado, sob a lei e o direito;
? criaram instituições públicas para aplicação das leis e garantia dos direitos, isto
é, os tribunais e os magistrados;
? criaram a instituição do erário público ou do fundo público, isto é, dos bens e
recursos que pertencem à sociedade e são por ela administrados por meio de
taxas, impostos e tributos, impedindo a concentração da propriedade e da riqueza
nas mãos dos dirigentes;
? criaram o espaço político ou espaço público – a assembléia grega e o senado
romano -, no qual os que possuem direitos iguais de cidadania discutem suas
opiniões, defendem seus interesses, deliberam em conjunto e decidem por meio
do voto, podendo, também pelo voto, revogar uma decisão tomada. É esse o
coração da invenção política. De fato, e como vimos, a marca do poder despótico
é o segredo, a deliberação e a decisão a portas fechadas. A política, ao contrário,
introduz a prática da publicidade, isto é, a exigência de que a sociedade conheça
as deliberações e participe da tomada de decisão.
Além disso, a existência do espaço público de discussão, deliberação e decisão
significa que a sociedade está aberta aos acontecimentos, que as ações não foram
fixadas de uma vez por todas por alguma vontade transcendente, que erros de
avaliação e de decisão podem ser corrigidos, que uma ação pode gerar problemas
novos, não previstos nem imaginados, que exigirão o aparecimento de novas leis
e novas instituições. Em outras palavras, gregos e romanos tornaram a política
inseparável do tempo e, como vimos no caso da ética, ligada à noção de possível
ou de possibilidade, isto é, a idéia de uma criação contínua da realidade social.
Para responder às diferentes formas assumidas pelas lutas de classes, a política é
inventada de tal maneira que, a cada solução encontrada, um novo conflito ou
uma nova luta podem surgir, exigindo novas soluções. Em lugar de reprimir os
conflitos pelo uso da força e da violência das armas, a política aparece como
trabalho legítimo dos conflitos, de tal modo que o fracasso nesse trabalho é a
causa do uso da força e da violência.
A democracia ateniense e as oligarquias de Esparta e da república romana
fundaram a idéia e a prática da política na Cultura ocidental. Eis por que os
historiadores gregos, quando a Grécia caiu sob o domínio do império de
Alexandre da Macedônia, e os historiadores romanos, quando Roma sucumbiu ao
domínio do império dos césares, falaram em corrupção e decadência da política:
para eles, o desaparecimento da polis e da res publica significava o retorno ao
despotismo e o fim da vida política propriamente dita.
Evidentemente, não devemos cair em anacronismos, supondo que gregos e
romanos instituíram uma sociedade e uma política cujos valores e princípios
fossem idênticos aos nossos. Em primeiro lugar, a economia era agrária e
escravista, de sorte que uma parte da sociedade – os escravos – estava excluída
dos direitos políticos e da vida política. Em segundo lugar, a sociedade era
patriarcal e, conseqüentemente, as mulheres também estavam excluídas da
cidadania e da vida pública. A exclusão atingia também os estrangeiros e os
miseráveis.
A cidadania era exclusiva dos homens adultos livres nascidos no território da
Cidade. Além disso, a diferença de classe social nunca era apagada, mesmo que
os pobres tivessem direitos políticos. Assim, para muitos cargos, o pré-requisito
da riqueza vigorava e havia mesmo atividades portadoras de prestígio que
somente os ricos podiam realizar. Era o caso, por exemplo, da liturgia grega e do
evergetismo romano, isto é, de grandes doações em dinheiro à cidade para festas,
construção de templos e teatros, patrocínio de jogos esportivos, de trabalhos
artísticos, etc.
O que procuramos apontar não foi a criação de uma sociedade sem classes, justa
e feliz, mas a invenção da política como solução e resposta que uma sociedade
oferece para suas diferenças, seus conflitos e suas contradições, sem escondê-los
sob a sacralização do poder e sem fechar-se à temporalidade e às mudanças.
Sociedade contra o Estado
Examinamos até aqui duas grandes respostas sociais ao poder: a resposta
despótica e a política. Em ambas, a sociedade procura organizar-se
economicamente – a forma da propriedade -, mantendo e mesmo criando
diferenças sociais profundas entre proprietários e não-proprietários, ricos e
pobres, livres e escravo s, homens e mulheres. Essas diferenças engendram lutas
internas, que podem levar à destruição de todos os membros do grupo social.
Para regular os conflitos, determinar limites às lutas, garantir que os ricos
conservem suas riquezas e os pobres aceitem sua pobreza, surge uma chefia que,
como vimos, pode tomar duas direções: ou o chefe se torna senhor das terras,
armas e deuses e transforma sua vontade em lei, ou o poder é exercido por uma
parte da sociedade – os cidadãos -, através de práticas e instituições públicas
fundadas na lei e no direito como expressão da vontade coletiva. Nos dois casos,
surge o Estado como poder separado da sociedade e encarregado de dirigi-la,
comandá-la, arbitrar os conflitos e usar a força. Há, porém, um terceiro caminho.
Fomos acostumados pela tradição antropológica européia a considerar as
sociedades existentes na América como atrasadas, primitivas e inferiores. Essa
visão nasceu do processo de colonização e conquista, iniciado no século XVI. Os
conquistadores e colonizadores que aportaram na América interpretaram as
diferenças entre eles e os nativos americanos como distinção hierárquica entre
superiores e inferiores: para eles os “índios” não tinham lei, rei, fé, escrita,
moeda, comércio, História; eram seres desprovidos dos traços daquilo que, para o
europeu cristão, súdito de monarquias, constituiria a civilização.
Sem dúvida, os conquistadores encontraram grandes impérios na América: incas,
astecas e maias. Por isso, os destruíram a ferro e fogo, exterminando as gentes,
pilhando as riquezas e erigindo igrejas sobre seus templos. Todavia, exceto por
esses impérios destruídos, os conquistadores encontraram as demais nações
americanas organizadas de maneira incompreensível para os padrões europeus.
Transformaram o que eram incapazes de compreender em inferioridade dos
americanos. Considerando-os selvagens e bárbaros, justificavam a escravidão, a
evangelização e o extermínio.
A visão européia, depois compartilhada pelos brancos americanos, era e é
etnocêntrica, isto é, considera padrões, valores e práticas dos brancos adultos
proprietários europeus como universais e definidores da Cultura e da civilização.
Para o etnocentrismo, portanto, os nativos americanos possuíam e possuem
sociedades carentes: falta-lhes o mercado (moeda e comércio), a escrita
(alfabética), a História e o Estado. Possuem, portanto, sociedades sem comércio,
sem escrita, sem memória e sem Estado.
O antropólogo francês Pierre Clastres estudou essas sociedades por um prisma
completamente diferente, longe do etnocentrismo costumeiro. Mostrou que
possuem escrita, mas que esta não é alfabética nem ideográfica ou hieroglífica
(isto é, não é a escrita conhecida pelos ocidentais e orientais), mas é simbólica,
gravada nos corpos das pessoas por sinais específicos, inscrita com sinais
específicos em objetos determinados e em espaços determinados. Somos nós que
não sabemos lê-la.
Mostrou também que possuem memória – mitos e narrativas dos povos -,
transmitida oralmente de geração em geração, transformando-se de geração em
geração. Mostrou, pelas mudanças na escrita e na memória, que tais sociedades
possuem História, mas que esta é inseparável da relação dos povos com a
Natureza, diferentemente da nossa História, que narra como nos separamos da
Natureza e como a dominamos. Mas, sobretudo, mostrou por que e como tais
sociedades são contra o mercado e contra o Estado. Em outras palavras, não são
sociedades sem comércio e sem Estado, mas contrárias a eles.
As sociedades indígenas estudadas por Clastres são sul-americanas, encontrandose
num estágio anterior ao das sociedades indígenas da América do Norte e dos
três grandes impérios situados no México, na América Central e no norte da
América do Sul. São, portanto, sociedades que não se organizaram na forma das
chefias norte-americanas nem dos grandes impérios, mas inventaram uma
organização deliberada para evitar aquelas duas formas de poder.
As sociedades indígenas são tribais ou comunais. Nelas, não há propriedade
privada nem divisão social do trabalho, não havendo, portanto, classes sociais
nem luta de classes. A propriedade é tribal ou comum e o trabalho se divide por
sexo e idade. São comunidades no sentido pleno do termo, isto é, são
internamente homogêneas, unas e indivisas, possuindo uma História e um destino
comuns. São sociedades do cara-a-cara, onde todos se conhecem pelo nome e são
vistos uns pelos outros diariamente.
Por isso mesmo, nelas o poder não se destaca nem se separa, não forma uma
instância acima dela (como na política), nem fora dela (como no despotismo). A
chefia não é um poder de mando a que a comunidade obedece. O chefe não
manda; a comunidade não obedece. A comunidade decide para si mesma, de
acordo com suas tradições e necessidades.
A oposição se estabelece não no interior da comunidade, mas em seu exterior,
isto é, nas relações com as outras comunidades, portanto, no que se refere à
guerra e às alianças de sangue pelo casamento. A função da chefia é representar a
comunidade perante outras comunidades.
O que é e o que faz o chefe, uma vez que não tem a função do poder, pois este
pertence à comunidade e dela não se separa? O chefe possui três funções: doar
presentes, fazer a paz e falar.
Exprimindo a benevolência dos deuses e a prosperidade da comunidade, o chefe
deve, em certos períodos, oferecer presentes a todos os membros da tribo, isto é,
devolver a ela o que ela mesma produziu. A doação de presentes é a maneira
deliberada que a comunidade inventou para impedir que alguém possa
concentrar bens e riquezas, tornar-se proprietário privado, criar desigualdade
econômica e social, de onde surgem a luta de classes e a necessidade do poder do
Estado.
Quando famílias ou indivíduos entram em conflito, o chefe deve intervir. Não
dispõe de códigos legais para arbitrar o conflito em nome da lei. Que faz ele? A
paz. Como a obtém? Apelando para o bom senso das partes, aos bons
sentimentos, à memória da comunidade, à tradição do bom convívio entre as
pessoas. Em suma, através dele a comunidade fala para reafirmar-se como
comunidade indivisa.
Excetuando-se a doação de presentes, a paz entre membros da comunidade, a
diplomacia para tratar com outras comunidades aliadas e o direito a usar a força,
liderando os guerreiros durante a guerra, a grande função da chefia situa-se na
fala ou na Grande Palavra. Todas as tardes, o chefe se dirige a um local distante
da aldeia, mas visível e de onde possa ser ouvido, e ali discursa. Embora ouvido,
ninguém deve dar-lhe atenção e o que ele diz não é ordem ou comando obrigando
à obediência. Que diz ele? Diz a palavra do poder: canta sua força e coragem, seu
prestígio, sua relação com os deuses, seus grandes feitos. Mas ninguém lhe dá
atenção. Ninguém o escuta.
A Grande Palavra tem significado simbólico: a comunidade lembra a si mesma,
diariamente, o risco e o perigo que correria se possuísse um chefe que lhe desse
ordens e ao qual devesse obedecer. A Grande Palavra simboliza a maneira pela
qual a comunidade impede o advento do poder como algo separado dela e que a
comandaria pela coerção da lei e das armas. Com a cerimônia da Grande Palavra,
a sociedade se coloca contra o surgimento do Estado.
Toda vez que o chefe não realiza as três funções internas e a função externa tais
como a comunidade as define, todas as vezes que pretende usar suas funções para
criar o poder separado, ele é morto pela comunidade.
Evidentemente, nossa tendência será dizer que tal organização é própria de povos
pouco numerosos e de uma vida sócio-econômica muito simples, parecendo-nos,
a nós, membros de sociedades complexas e de classes, uma vaga lembrança
utópica. Pierre Clastres, porém, indaga: Por que outras comunidades, mundo
afora, não foram capazes de impedir o surgimento da propriedade privada, das
divisões sociais de castas e classes, das desigualdades que resultaram na
necessidade de criar o poder separado, seja como poder despótico, seja como
poder político? Por que, afinal, os homens sucumbiram à necessidade de criar o
Estado como poder de coerção social?

A VIDA POLITICA

Marilena Chauí

Paradoxos da política

Não é raro ouvirmos dizer que “lugar de estudante é na sala de aula e não na rua,
fazendo passeata” ou “estudante estuda, não faz política”. Mas também ouvimos
o contrário, quando alguém diz que “os estudantes estão alienados, não se
interessam por política”. No primeiro caso, considera-se a política uma atividade
própria de certas pessoas encarregadas de fazê-la – os políticos profissionais -,
enquanto no segundo caso, considera-se a política um interesse e mesmo uma
obrigação de todos. Assim, um primeiro paradoxo da política faz aqui sua
aparição: é ela uma atividade específica de alguns profissionais da sociedade ou
concerne a todos nós, porque vivemos em sociedade?
Como se observa, usamos a palavra política ora para significar uma atividade
específica – o governo -, realizada por um certo tipo de profissional – o político -,
ora para significar uma ação coletiva – o movimento estudantil nas ruas – de
reivindicação de alguma coisa, feita por membros da sociedade e dirigida aos
governos ou ao Estado. Afinal, a política é uma profissão entre outras ou é uma
ação que todos os indivíduos realizam quando se relacionam com o poder? A
política se refere às atividades de governo ou a toda ação social que tenha como
alvo ou como interlocutor o governo ou o Estado?
No entanto, podemos usar a palavra política ainda noutro sentido.
De fato, freqüentemente, encontramos expressões como “política universitária”,
“política da escola”, “política do hospital”, “política da empresa”, “política
sindical”. Nesse conjunto de expressões, já não encontramos a referência ao
governo nem a profissionais da política. “Política universitária” e “política da
escola” referem-se à maneira como uma instituição de ensino (pública ou
privada) define sua direção e o modo de participação ou não de professores e
estudantes em sua gestão, ao modo como os recursos serão empregados, ao
currículo, às formas de avaliação dos alunos e professores, ao tipo de pessoa que
será recebida como estudante ou como docente, à carreira dos docentes, aos
salários, e, se a instituição for privada, ao custo das mensalidades e matrículas,
etc.
Em sentido próximo a esse fala-se de “política do hospital”. Já “política da
empresa” refere-se ao modo de organização e divisão de poderes relativos aos
investimentos e aos lucros de uma empresa, à distribuição dos serviços, à divisão
do trabalho, às decisões sobre a produção e a distribuição dos produtos, às
relações com as outras empresas, etc. “Política do sindicato” refere-se à maneira
de preencher os cargos de direção sindical, às formas de representação e
participação dos sindicalizados na direção do sindicato, aos conteúdos e às
formas das reivindicações e lutas dos sindicalizados em face de outros poderes,
etc.
Podemos, então, indagar: Afinal, o que é a política? É a atividade de governo? É
a administração do que é público? É profissão de alguns especialistas? É ação
coletiva referida aos governos? Ou é tudo que se refira à organização e à gestão
de uma instituição pública ou privada? No primeiro caso (governo e
administração), usamos “política” para nos referirmos a uma atividade que exige
formas organizadas de gestão institucional e, no segundo caso (gestão e
organização de instituições), usamos “política” para nos referirmos ao fato de que
organizar e gerir uma instituição envolve questões de poder. Em resumo: Política
diz respeito a tudo quanto envolva relações de poder ou a tudo quanto envolva
organização e administração de grupos?
Como veremos posteriormente, o crescimento das atribuições conferidas aos
governos, sob a forma do Estado, levou a uma ampliação do campo das
atividades políticas, que passaram a abranger questões administrativas e
organizacionais, decisões econômicas e serviços sociais. Essa ampliação acabou
levando a um uso generalizado da palavra política para referir-se a toda
modalidade de direção de grupos sociais que envolva poder, administração e
organização.
Podemos, assim, distinguir entre o uso generalizado e vago da palavra política e
um outro, mais específico e preciso, que fazemos quando damos a ela três
significados principais inter-relacionados:
1. o significado de governo, entendido como direção e administração do poder
público, sob a forma do Estado. O senso comum social tende a identificar
governo e Estado, mas governo e Estado são diferentes, pois o primeiro diz
respeito a programas e projetos que uma parte da sociedade propõe para o todo
que a compõe, enquanto o segundo é formado por um conjunto de instituições
permanentes que permitem a ação dos governos.
Ao Estado confere-se autoridade para gerir o erário ou fundo público por meio de
impostos, taxas e tributos, para promulgar e aplicar as leis que definem os
costumes públicos lícitos, os crimes, bem como os direitos e as obrigações dos
membros da sociedade. Também se reconhece como autoridade do governo ou
do Estado o poder para usar a força (polícia e exército) contra aqueles que forem
considerados inimigos da sociedade (criminosos comuns e criminosos políticos).
Confere-se igualmente ao governo ou ao Estado o poder para decretar a guerra e
a paz. Exige-se dos membros da sociedade obediência ao governo ou ao Estado,
mas reconhece-se o direito de resistência e de desobediência quando a sociedade
julga o governo ou mesmo o Estado injusto, ilegal ou ilegítimo.
A política, neste primeiro sentido, refere-se, portanto, à ação dos governantes que
detêm a autoridade para dirigir a coletividade organizada em Estado, bem como
às ações da coletividade em apoio ou contrárias à autoridade governamental e
mesmo à forma do Estado;
2. o significado de atividade realizada por especialistas – os administradores – e
profissionais – os políticos -, pertencentes a um certo tipo de organização
sociopolítica – os partidos -, que disputam o direito de governar, ocupando
cargos e postos no Estado. Neste segundo sentido, a política aparece como algo
distante da sociedade, uma vez que é atividade de especialistas e profissionais
que se ocupam exclusivamente com o Estado e o poder. A política é feita “por
eles” e não “por nós”, ainda que “eles” se apresentem como representantes
“nossos”;
3. o significado, derivado do segundo sentido, de conduta duvidosa, não muito
confiável, um tanto secreta, cheia de interesses particulares dissimulados e
freqüentemente contrários aos interesses gerais da sociedade e obtidos por meios
ilícitos ou ilegítimos. Este terceiro significado é o mais corrente para o senso
comum social e resulta numa visão pejorativa da política. Esta aparece como um
poder distante de nós (passa-se no governo ou no Estado), exercido por pessoas
diferentes de nós (os administradores e profissionais da política), através de
práticas secretas que beneficiam quem as exerce e prejudicam o restante da
sociedade. Fala-se na política como “mal necessário”, que precisamos tolerar e
do qual precisamos desconfiar. A desconfiança pode referir-se tanto aos atuais
ocupantes dos postos e cargos políticos, quanto a grupos e organizações que lhes
fazem oposição e pretendem derrubá-los, seja para ocupar os mesmos postos e
cargos, seja para criar um outro Estado, através de uma revolução sócioeconômica
e política.
Onde está o paradoxo? Na divergência entre o primeiro e o terceiro sentido da
palavra política, pois o primeiro se refere a algo geral, que concerne à sociedade
como um todo, definindo leis e costumes, garantindo direitos e obrigações,
criando espaço para contestações através da reivindicação, da resistência e da
desobediência, enquanto o terceiro sentido afasta a política de nosso alcance,
fazendo-a surgir como algo perverso e maléfico para a sociedade. A divergência
entre o primeiro e o terceiro é provocada pelo segundo significado, isto é, aquele
que reduz a política à ação de especialistas e profissionais.
Essa situação paradoxal da política acaba por fazer-nos aceitar como óbvias e
verdadeiras certas atitudes e afirmações que, se examinadas mais a fundo, seriam
percebidas como absurdas.
Tomemos um exemplo recente da história da política do País. Em 1993, durante
o julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), do pedido do ex-presidente
da república, Fernando Collor de Mello, de não-suspensão de seus direitos
políticos, ouvimos, em toda a parte, a afirmação de que o Poder Judiciário (do
qual o Supremo Tribunal Federal é o órgão mais alto) só teria sua dignidade
preservada se o julgamento do pedido não fosse um “julgamento político”.
Onde está o paradoxo? No fato de que a república brasileira é constituída por três
poderes políticos – executivo, legislativo, judiciário -, e, portanto, o Supremo
Tribunal Federal, sendo um poder político da República (um poder do Estado),
não pode ficar fora da política. Que sentido, portanto, poderia ter a idéia de que o
órgão mais alto do Poder Judiciário não deve julgar politicamente? Como desejar
que um poder do Estado, portanto, um poder político, aja fora da política?
Mais paradoxal, ainda, foi o modo como os juízes, após o julgamento, avaliaram
seu próprio trabalho, dizendo: “Foi um julgamento legal e não político”. Ora (e
nisso reside o paradoxo), a lei não é feita pelo Poder Legislativo? Não é parte da
Constituição da República? Não é parte essencial da política? Como, então,
separar o legal e o político, se a lei é uma das formas fundamentais da ação
política?
Na verdade, quando se insistia em que o julgamento “não fosse político” e se
elogiava o julgamento por “ter sido apenas legal ”, o que estava sendo
pressuposto por todos (sociedade e juízes) era a identificação costumeira entre
política e interesses particulares escusos, contrários aos da maioria, que por isso
deve ser protegida pela lei contra a política. O paradoxo está no fato de que uma
forma essencial da política – a lei – aparece como proteção contra a própria
política.
Uma outra afirmação que aceitamos tranqüilamente é aquele que acusa e critica
uma greve, declarando que se trata de “greve política”. É curioso que usemos,
sem problema, a expressão “política sindical” e, ao mesmo tempo, a
condenemos, criticando uma greve sob a alegação de ser “política”.
Em certos casos, é compreensível o paradoxo. Quando, por exemplo, se trata de
trabalhadores de uma fábrica de automóveis que, em nome de melhores salários,
entram em greve contra a direção da empresa, compreende-se que a greve seja
considerada “simplesmente econômica”. Ao criticá-la como “greve política”
está-se, como sempre, querendo dizer que os grevistas, sob a aparência de uma
reivindicação salarial, estariam defendendo interesses particulares escusos e
ilegítimos, ou buscando, dissimuladamente, vantagens e poderes para alguns
sindicalistas. A palavra política é, assim, empregada para dar um sentido
pejorativo à greve.
Há casos, porém, em que a expressão “greve política”, usada como crítica ou
acusação, é surpreendente. Suponhamos, por exemplo, que os trabalhadores de
um país façam uma greve geral contra o plano econômico do governo. Estão,
portanto, recusando uma política econômica e, nesse caso, a greve é e só pode
ser política. Por que, então, acusar uma greve por ela ser o que ela é? O motivo é
simples: para o senso comum social, dizer de alguma coisa que ela é “política” é
fazer uma acusação. A crítica só em aparência está dirigida contra a greve, pois,
realmente, está voltada contra a política, imaginada como algo maléfico.
Essa visão generalizada da política como algo perverso, perigoso, distante de nós
(passa-se no Estado), praticado por “eles” (os políticos profissionais) contra
“nós”, sob o disfarce de agirem “por nós”, faz com que seja sentida como algo
secreto e desconhecido, uma conduta calculista e oportunista, uma força corrupta
e, através da polícia, uma força repressora usada contra a sociedade. Essa
imagem da política como um poder do qual somos vítimas tolerantes, que
consentem a violência, é paradoxal pelo menos por dois motivos principais.
Em primeiro lugar, porque a política foi inventada pelos humanos como o modo
pelo qual pudessem expressar suas diferenças e conflitos sem transformá-los em
guerra total, em uso da força e extermínio recíproco. Numa palavra, como o
modo pelo qual os humanos regulam e ordenam seus interesses conflitantes, seus
direitos e obrigações enquanto seres sociais. Como explicar, então, que a política
seja percebida como distante, maléfica e violenta?
Em segundo lugar, porque a política foi inventada como o modo pelo qual a
sociedade, internamente dividida, discute, delibera e decide em comum para
aprovar ou rejeitar as ações que dizem respeito a todos os seus membros. Como
explicar, então, que seja percebida como algo que não nos concerne, mas nos
prejudica, não nos favorece, mas favorece aos interesses escusos e ilícitos de
outros?
Que aconteceu a essa invenção humana para tornar-se, paradoxalmente, um fardo
de que gostaríamos de nos livrar?
Cotidianamente, jornais, rádios, televisões mostram, no mundo inteiro, fatos
políticos que reforçam a visão pejorativa da política: corrupção, fraudes, crimes
impunes praticados por políticos, mentiras provocando guerras para satisfazer aos
interesses econômicos dos fabricantes de armamentos, desvios de recursos
públicos que deveriam ser usados contra a fome, as doenças, a pobreza, aumento
das desigualdades econômicas e sociais, uso das leis com finalidades opostas aos
objetivos que tiveram ao ser elaboradas, etc.
Ao lado desses fatos, não passa um dia sem que saibamos o modo desumano,
autoritário, violento com que funcionários públicos, cujo salário é pago por nós
(através de impostos), tratam a população que busca os serviços públicos.
Também contribui para a visão negativa da política a maneira como as leis estão
redigidas, tornando-se incompreensíveis para a sociedade e exigindo que sejam
interpretadas por especialistas, sem que tenhamos garantia de que as interpretam
corretamente, se o fazem em nosso favor ou em favor de privilégios escondidos.
O que é curioso, porém, aumentando nossa percepção da política como algo
paradoxal, é o fato de que só podemos opor-nos a tais fatos e lutar contra eles
através da própria política, pois mesmo quando se faz uma guerra civil ou se
realiza uma revolução, os motivos e objetivos são a política, isto é, mudanças na
forma e no conteúdo do poder. Mesmo as utopias de emancipação do gênero
humano contra todas as modalidades de servidão, escravidão, autoritarismo,
violência e injustiça concebem o término de poderes ilegítimos, mas não o
término da própria política.
As pessoas que, desgostosas e decepcionadas, não querem ouvir falar em
política, recusam-se a participar de atividades sociais que possam ter finalidade
ou cunho políticos, afastam-se de tudo quanto lembre atividades políticas,
mesmo tais pessoas, com seu isolamento e sua recusa, estão fazendo política,
pois estão deixando que as coisas fiquem como estão e, portanto, que a política
existente continue tal qual é. A apatia social é, pois, uma forma passiva de fazer
política.

O vocabulário da política

O historiador helenista Moses Finley, estudando as sociedades grega e romana,
concluiu que o que chamamos de política foi inventado pelos gregos e romanos.
Antes de examinarmos o que foi tal invenção, já podemos compreender a origem
greco-romana do que chamamos de política pelo simples exame do vocabulário
usado em política: democracia, aristocracia, oligarquia, tirania, despotismo,
anarquia, monarquia são palavras gregas que designam regimes políticos;
república, império, poder, cidade, ditadura, senado, povo, sociedade, pacto,
consenso são palavras latinas que designam regimes políticos, agentes políticos,
formas de ação política.
A palavra política é grega: ta politika, vinda de polis.
Polis é a Cidade, entendida como a comunidade organizada, formada pelos
cidadãos (politikos), isto é, pelos homens nascidos no solo da Cidade, livres e
iguais, portadores de dois direitos inquestionáveis, a isonomia (igualdade perante
a lei) e a isegoria (o direito de expor e discutir em público opiniões sobre ações
que a Cidade deve ou não deve realizar).
Ta politika são os negócios públicos dirigidos pelos cidadãos: costumes, leis,
erário público, organização da defesa e da guerra, administração dos serviços
públicos (abertura de ruas, estradas e portos, construção de templos e
fortificações, obras de irrigação, etc.) e das atividades econômicas da Cidade
(moeda, impostos e tributos, tratados comerciais, etc.).
Civitas é a tradução latina de polis, portanto, a Cidade como ente público e
coletivo. Res publica é a tradução latina para ta politika, significando, portanto,
os negócios públicos dirigidos pelo populus romanus, isto é, os patrícios ou
cidadãos livres e iguais, nascidos no solo de Roma.

Polis e civitas correspondem (imperfeitamente) ao que, no vocabulário político
moderno, chamamos de Estado: o conjunto das instituições públicas (leis, erário
público, serviços públicos) e sua administração pelos membros da Cidade.
Ta politika e res publica correspondem (imperfeitamente) ao que designamos
modernamente por práticas políticas, referindo-se ao modo de participação no
poder, aos conflitos e acordos na tomada de decisões e na definição das leis e de
sua aplicação, no reconhecimento dos direitos e das obrigações dos membros da
comunidade política e às decisões concernentes ao erário ou fundo público.
Dizer que os gregos e romanos inventaram a política não significa dizer que,
antes deles, não existiam o poder e a autoridade, mas sim que inventaram o poder
e a autoridade políticos propriamente ditos. Para compreendermos o que se
pretende dizer com isso, convém examinarmos como era concebido e praticado o
poder nas sociedades não greco-romanas.

In: Marilena Chaui. Um convite a filosofia.

domingo, 15 de abril de 2007

ETNOCENTRISMO


ETNOCENTRISMO

Everardo P. Guimarães Rocha

Etnocentrismo é uma visão do mundo onde o nosso próprio grupo é tomado como centro de tudo e todos os outros são pensados e sentidos através dos nossos valores, nossos modelos, nossas definições do que é a existência. No plano intelectual, pode ser visto como a dificuldade de pensarmos a diferença; no plano afetivo, como sentimentos de estranheza, medo, hostilidade, etc.
Perguntar sobre o que é etnocentrismo é, pois, indagar sobre um fenômeno onde se misturam tanto elementos intelectuais e racionais quanto elementos emocionais e afetivos. No etnocentrismo, estes dois planos do espírito humano – sentimento e pensamento – vão juntos compondo um fenômeno não apenas fortemente arraigado na história das sociedades, como também facilmente encontrável no dia-a-dia das nossas vidas.
Assim, a colocação central sobre o etnocentrismo pode ser expressa como a procura de sabermos os mecanismos, as formas, os caminhos e razões, enfim; pelos quais tantas e tão profundas distorções se perpetuam nas emoções, pensamentos, imagens e representações que fazemos da vida daqueles que são diferentes de nós. Este problema não é exclusivo de uma determinada época nem de uma única sociedade. Talvez o etnocentrismo seja, dentre os fatos humanos, um daqueles de mais unanimidade.
Como uma espécie de pano de fundo da questão etnocêntrica temos a experiência de um choque cultural. De um lado, conhecemos um grupo do “eu”, o “nosso” grupo, que come igual, veste igual, gosta de coisas parecidas, conhece problemas do mesmo tipo, acredita nos mesmos deuses da mesma forma, empresta à vida significados em comum e procede, por muitas maneiras, semelhantemente. Aí, então, de repente, nos deparamos com um “outro”, o grupo do “diferente” que, às vezes, nem sequer faz coisas como as nossas ou quando as faz é de forma tal que não reconhecemos como possíveis. E, mais grave ainda, este “outro” também sobrevive à sua maneira, gosta dela, também está no mundo e, ainda que diferente, também existe.
Este choque gerador do etnocentrismo nasce, talvez, na constatação das diferenças. Grosso modo, um mal-entendido sociológico. A diferença é ameaçadora porque fere nossa própria identidade cultural. O monólogo etnocêntrico pode, pois, seguir um caminho lógico mais ou menos assim: Como aquele mundo de doidos pode funcionar? Espanto! Como é que eles fazem? Curiosidade perplexa? Eles só podem estar errados ou tudo o que eu sei está errado! Dúvida ameaçadora?! Não, a vida deles não presta, é selvagem, bárbara, primitiva! Decisão hostil!
O grupo do “eu” faz, então, da sua visão a única possível ou, mais discretamente se for o caso, a melhor, a natural, a superior, a certa. O grupo do “outro” fica, nessa lógica, como sendo engraçado, absurdo, anormal ou ininteligível. Este processo resulta num considerável reforço da identidade do “nosso” grupo. No limite, algumas sociedades chama-se por nomes que querem dizer “perfeitos”, “excelentes” ou, muito simplesmente, “ser humano” e ao “outro”, ao estrangeiro, chamam, por vezes, de “macacos da terra” ou “ovos de piolho”. De qualquer forma, a sociedade do “eu” é a melhor, a superior. É representada como o espaço da cultura e da civilização por excelência. É o espaço da natureza. São os selvagens, os bárbaros. São qualquer coisa menos humanos, pois, estes somos nós. O barbarismo evoca a confusão, a desarticulação, a desordem. O selvagem é o que vem da floresta, da selva que lembra, de alguma maneira, a vida animal. O “outro” é o “aquém” ou o “além”, nunca o “igual” ao “eu”.
O que importa realmente, neste conjunto de idéias, é o fato de que, no etnocentrismo, uma mesma atitude informa os diferentes grupos. O etnocentrismo não é propriedade, como já disse, de uma única sociedade, apesar de que, na nossa, revestiu-se de um caráter ativista e colonizador com ao mais diferentes empreendimentos de conquista e destruição de outros povos.
A atitude etnocêntrica tem, por outro lado, um correlato bastante importante e que talvez seja elucidativo para a compreensão destas maneiras exacerbadas e até cruéis de encarar o “outro”. Existe realmente, paralelo à violência que a atitude etnocêntrica encerra, o pressuposto de que o “outro” deva ser alguma coisa que não desfrute da palavra para dizer algo de si mesmo.
Creio que é necessário examinar isto melhor e vou fazê-lo através de uma pequena estória que me parece exemplar.
Ao receber a missão de ir pregar junto aos selvagens um pastor se preparou durante dias para vir ao Brasil e iniciar no Xingu seu trabalho de evangelização e catequese. Muito generoso, comprou para os selvagens contas, espelhos, pentes, etc.; modesto, comprou para si mesmo apenas um moderníssimo relógio digital capaz de acender luzes, alarmes, fazer contas, marcar segundos, cronometrar e até dizer a hora sempre absolutamente certa, infalível. Ao chegar, venceu as burocracias inevitáveis e, após alguns meses, encontrava-se em meio às sociedades tribais do Xingu distribuindo seus presentes e sua doutrinação. Tempos depois, fez-se amigo de um índio muito jovem que o acompanhava a todos os lugares de sua pregação e mostrava-se admirado de muitas coisas, especialmente do barulhento, colorido e estranho objeto que o pastor trazia no pulso e consultava freqüentemente. Um dia, por fim, vencido por insistentes pedidos, o pastor perdeu seu relógio dando-o, meio sem jeito e a contragosto, ao jovem índio.
A surpresa maior estava, porém, por vir. Dias depois, o índio chamou-o apressadamente para mostrar-lhe, muito feliz, seu trabalho. Apontando seguidamente o galho superior de uma árvore altíssima nas cercanias da aldeia, o índio fez o pastor divisar, não sem dificuldade, um belo ornamento de penas e conta multicores, e no centro o relógio. O índio queria que o pastor compartilhasse a alegria da beleza transmitida por aquele novo e interessante objeto. Quase indistinguível em meio às penas e contas e, ainda por cima, pendurado a vários metros de altura, o relógio, agora mínimo e sem nenhuma função, contemplava o sorriso inevitavelmente amarelo no rosto do pastor. Fora-se o relógio.

Passados mais alguns meses o pastor também se foi de volta para casa. Sua tarefa seguinte era entregar aos superiores seus relatórios e, naquela manhã, dar uma ultima revisada na comunicação que iria fazer em seguida a seus colegas em um congresso sobre evangelização. Seu tema: “A catequese e os selvagens”. Levantou-se, deu uma olhada no relógio novo, quinze para as dez. era hora de ir. Como que buscando uma inspiração de última hora examinou detalhadamente as paredes do seu escritório. Nelas, arcos, flechas, tacapes, bordunas, cocares, e até uma flauta formavam uma bela decoração. Rústica e sóbria ao mesmo tempo, trazia-lhe estranhas lembranças. Com o pé na porta ainda pensou e sorriu para si mesmo. Engraçado o que aquele índio fizera com o seu relógio.
Esta estória, não necessariamente verdadeira, porém, de toda a evidência, bastante plausível, demonstra alguns dos importantes sentidos da questão do etnocentrismo.
Em primeiro lugar, não é necessário ser nenhum detetive ou especialista em Antropologia Social (ou ainda pastor) para perceber que, neste choque de culturas, os personagens de cada uma delas fizeram, obviamente, a mesma coisa. Privilegiaram ambos as funções estéticas, ornamentais, decorativas de objetos que, na cultura do “outro”, desempenhavam funções que seriam principalmente técnicas. Para o pastor, o uso inusitado do seu relógio causou tanto espanto quanto causaria ao jovem índio conhecer o uso que o pastor deu a seu arco e flecha. Cada um “traduziu” nos termos de sua própria cultura o significado dos objetos cujo sentido original foi forjado na cultura do “outro”. O etnocentrismo passa exatamente por um julgamento do valor da cultura do “outro”. O etnocentrismo passa exatamente por um julgamento do valor da cultura do “outro” nos termos da cultura do grupo do “eu”.
Em segundo lugar, essa estória representa o que se poderia chamar, se isso fosse possível, de um etnocentrismo “cordial”, já que ambos – o índio e o pastor – tiveram atitudes concretas sem maiores conseqüências. No mais das vezes, o etnocentrismo implica uma apreensão do “outro” que se reveste de uma forma bastante violenta. Como já vimos, pode colocá-lo como “primitivo”, como “algo a ser destruído”, como “atraso ao desenvolvimento”, (fórmula, aliás, muito comum e de uso geral no etnocídio, na matança dos índios).
Assim, por exemplo, um famoso cientista do início do século, Hermann von Ihering, diretor do Museu Paulista, justificava o extermínio dos índios Caingangue por serem um empecilho ao desenvolvimento e à colonização das regiões do sertão que eles habitavam. Tanto no presente como no passado, tanto aqui como em vários outros lugares, a lógica do extermínio regulou, infinitas vezes, as relações entre a chamada (civilização ocidental”, tristemente exemplar, de uma criança, de um grande centro urbano que, de tanto ouvir absurdos sobre o índio, seja em casa, seja nos livros didáticos, seja na indústria cultural, acabou por defini-los dizendo: “o índio é o maior amigo do homem”.
Em terceiro lugar, a estória ainda ensina que o “outro” e sua cultura, da qual falamos na nossa sociedade, são apenas uma representação, uma imagem distorcida que é manipulada como bem entendemos. Ao “outro” negamos aquele mínimo de autonomia necessária para falar de si mesmo. Tudo se passa como se fôssemos autores de filmes e livros de ficção científica onde podemos falar e pensar o quanto é cruel, grotesca e monstruosa uma civilização de marcianos que capturou nosso foguete. Também, porque somos os autores destes filmes e livros, nada nos impede de criarmos um marciano simpático, inteligente e superpoderoso que com incrível perícia salva a Terra de uma colisao fatal com um meteoro gigante. Claro, como o marciano não diz nada, posso falar dele o que quiser.
Assim, de um ponto de vista do grupo do “eu”, os que estão de fora podem ser brabos e traiçoeiros bem como mansos e bondosos. Aliás, “brabos” e “mansos” são dois termos que muitas vezes foram empregados no Brasil para designar o “humor” de determinados animais e o “estado” de varias tribos de índios ou de escravos negros.
A figura do louco, por exemplo, na nossa sociedade, é manipulada por uma série de representações que oscilam entre estes dois pólos, sendo denegrida ou exaltada – como o marciano – ao sabor das intenções que se tenha. Isto não só ao longo da história, mas também em diferentes contextos no presente. A expressão “fulano é muito louco” pode ser elogiosa em certos casos e pejorativa em outros. Em alguns momentos da história o louco foi acorrentado e torturado, em outros, foi portador de uma palavra sagrada e respeitada.
Aqueles que são diferentes do grupo do eu – os diversos “outros” deste mundo – por não poderem dizer algo de si mesmos, acabam representados pela ótica etnocêntrica e segundo as dinâmicas ideológicas de determinados momentos.
Na nossa chamada “civilização ocidental”, nas sociedades complexas e industriais contemporâneas, existem diversos mecanismos de reforço para o seu estilo de vida através de representações negativas do “outro”. O caso dos índios brasileiros é bastante ilustrativo, pois alguns antropólogos estudiosos do assunto já identificaram determinadas visões básicas, determinados estereótipos, que são permanentemente aplicados a estes índios.
Eu mesmo realizai, há alguns anos, um estudo sobre as imagens do índio nos livros didáticos de História do Brasil. Estes livros têm importância fundamental na formação de uma imagem do índio, pis são lidos e, mais ainda, estudados por m milhões de alunos pré-universitários nos mais diversos recantos do país. Alguns destes livros alcançam tiragens altíssimas e já tiveram mais de duzentas edições. Através deles circula um “saber” altamente etnocêntrico – honrosas exceções – sobre os índios.
Os livros didáticos, em função mesmo do seu destino e de sua natureza, carregam um valor de autoridade, ocupam um lugar de supostos donos da verdade. Sua informação obtém este valor de verdade pelo simples fato de que quem sabe seu conteúdo passa nas provas. Nesse sentido, seu saber tende a ser visto como algo “rigoroso”, “sério” e “científico”. Os estudantes são testados, via de regra, em face do seu conteúdo, o que faz co que as informações neles contidas acabem se fixando no fundo da memória de todos nós. Com ela se fixam também imagens extremamente etnocêntricas.
Alguns livros colocavam que os índios eram incapazes de trabalhar nos engenhos de açúcar por serem indolentes e preguiçosos. Ora, como aplicar adjetivos tais como “indolente” e “preguiçoso” a alguém, um povo ou uma pessoa, que se recuse a trabalhar como escravo, numa lavoura que não é a sua, para a riqueza de um colonizador que nem sequer é seu amigo: antes, muito pelo contrário, esta recusa é, no mínimo, sinal de saúde mental.

Outro fato também interessante é que um número significativo de livros didáticos começa com a seguinte informação: os índios andavam nus. Este “escândalo” esconde, na verdade, a nossa noção absolutizada do que deva ser uma roupa e o que, num corpo, ela deve mostrar e esconder. A estória do nosso amigo missionário serviu para a constatação das dificuldades de definir o sentido de um objeto – o relógio ou o arco – fora dos seus contextos culturais. Da mesma maneira, nada garante que os índios andem nus a não ser a concepção que eles mesmos teriam de nudez e vestimenta.
Assim, como o “outro” é alguém calado, a quem não é permitido dizer de si mesmo, mera imagem sem voz, manipulado de acordo com desejos ideológicos, o índio é, para o livro didático, apenas uma forma vazia que empresta sentido ao mundo dos brancos. Em outras palavras, o índio é “alugado” na História do Brasil para aparecer por três vezes m três papeis diferentes.
O primeiro papel que o índio representa é no capítulo do descobrimento. Ali, ele aparece como “selvagem”, “primitivo”, “pré-histórico”, “antropófago”, etc. isto era para mostrar o quanto os portugueses colonizadores eram “superiores” e “civilizados”.
O segundo papel do índio é no capítulo da catequese. Nele o papel do índio é o de “criança”, “inocente”, “infantil”, “almas virgens”, etc., para fazer parecer que os índios é que precisavam da “proteção” que a religião lhes queria impingir.
O terceiro papel é muito engraçado. É no capítulo “Etnia brasileira”. Se o índio já havia aparecido como “selvagem” ou “criança”, como iriam falar de um povo – o nosso – formado por portugueses, negros e “selvagens”? Então aparece um novo papel e o índio, num passe de mágica etnocêntrica, vira “corajoso”, “altivo”, cheio de “amor à liberdade”.
Assim são as sutilezas, violências, persistências do que chamamos etnocentrismo. Os exemplos se multiplicam nos nossos cotidianos. A “indústria cultural” – TV, jornais, revistas, publicidade, certo tipo de cinema, rádio – está freqüentemente fornecendo exemplos de etnocentrismo. No universo da indústria cultural é criado sistematicamente um enorme conjunto de “outros” que servem para reafirmar, por oposição, um a serie de valores de um grupo dominante que se autopromove a modelo de humanidade.
Nossas próprias atitudes frente a outros grupos sociais com os quais convivemos nas grandes cidades são, muitas vezes, repletas de atitudes etnocêntricas. Rotulamos e aplicamos estereótipos através dos quais nos guiamos para o confronto cotidiano com a diferença. As idéias etnocêntricas que temos sobre as “mulheres”, os “negros”, os “empregados”, os “paraíbas de obra”, os “colunáveis”, os “doidões”, os “surfistas”, as “dondocas”, os “velhos”, os “caretas”, os “vagabundos”, os gays e todos os demais “outros” com os quais temos familiaridade, são uma espécie de “conhecimento” um “saber” baseado em formulações ideológicas, que no fundo transforma a diferença pura e simples num juízo de valor perigosamente etnocêntrico.
Mas, existem idéias que se contrapõem ao etnocentrismo. Uma das mais importantes é a da relativização. Quando vemos que as verdades da vida são menos uma questão de essência das coisas e mais uma questão de posição: estamos relativizando. Quando compreendemos o “outro” nos seus próprios valores e não nos nossos: estamos relativizando. Enfim, relativizar é ver as coisas do mundo como uma relação capaz de ter tido um nascimento, capaz de ter um fim ou uma transformação. Ver as coisas do mundo como a relação entre elas. Ver que a verdade está mais no olhar que naquilo que é olhado. Relativizar é não transformar a diferença em hierarquia, em superiores e inferiores ou em bem e mal, mas vê-la na sua dimensão de riqueza por ser diferença.
A nossa sociedade já vem, há alguns séculos, construindo um conhecimento ou, se quisermos, uma ciência sobre a diferença entre os seres humanos. Esta ciência chama-se Antropologia Social. Ela, como de resto quase todas as atitudes que temos frente ao “outro”, nasceu marcada pelo etnocentrismo. Ela também possui o compromisso da procura de superá-lo. Diferentemente do saber de “senso comum”, o movimento da Antropologia é no sentido de ver a diferença como forma pela qual os seres humanos deram soluções diversas a limites existenciais comuns. Assim, a diferença não se equaciona com a ameaça, mas com a alternativa. Ela não é uma hostilidade do “outro”, mas uma possibilidade que o “outro” pode abrir para o “eu”.


[1] Everardo P. Guimarães Rocha. O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 1999. Col. Primeiros Passos. Pp. 7-22.

Os Filhos de Clio


Na mitologia grega, as musas eram deusas irmãs veneradas desde tempos remotos no monte Hélicon, da Beócia, onde eram festejadas a cada quatro anos, e na Piéria, Trácia. Inicialmente, eram as inspiradoras dos poetas.
Mais tarde sua influência se estendeu a todas as artes e ciências. Na Odisséia Homero menciona nove musas, que constituíam um grupo indiferenciado de divindades. A diferenciação teve início com Hesíodo, que chamou-as Clio, Euterpe, Talia, Melpômene, Terpsícore, Érato, Polímnia, Urânia, e Calíope (ou Caliopéia), esta a líder das musas.
Eram filhas de Mnemósine (Memória). Na relação de Hesíodo - que embora seja a mais conhecida, não é a única - os nomes são significativos. Érato, por exemplo, significa "adorável" e Calíope, "a de bela voz".
Em geral as musas eram tidas como virgens, ou pelo menos não eram casadas, o que não impede que lhes seja atribuída a maternidade de Orfeu, Reso, Eumolpo e outros personagens, de alguma forma ligados à poesia e à música, ou relacionados à Trácia.
Estátuas das musas eram muito usadas em decoração. Os escultores representavam-nas sempre com algum objeto, como a lira ou o pergaminho, e essa prática pode ter contribuído para a distribuição das musas entre as diferentes artes e ciências.
As associações entre as musas e suas áreas de proteção, no entanto, são tardias e apresentam muitas divergências. De maneira geral, Clio se liga à história; Euterpe, à música; Talia, à comédia; Melpômene, à tragédia; Terpsícore, à dança; Urânia, à astronomia; Érato, à poesia lírica; Polímnia, à retórica; e Calíope, à poesia épica. Mesmo na mitologia greco-romana existem outros grupos de musas, de cunho mais regional, como o das musas Méleta, da meditação; Mnema, da memória; e Aede, protetora do canto e da música