A VIDA POLÍTICA (Continuação)
Marilena Chauí
O poder despótico
Nas realezas existentes antes dos gregos, nos territórios que viriam a formar a
Grécia – realezas micênicas e cretenses -, bem como as que existiam nos
territórios que viriam a formar Roma – realezas etruscas -, assim como nos
grandes impérios orientais – Pérsia, Egito, Babilônia, Índia, China – vigorava o
poder despótico ou patriarcal .
Em grego, despotes, e, em latim, pater-familias, o patriarca, é o chefe de
famíliaxiv cuja vontade absoluta é a lei: “Aquilo que apraz ao rei tem força de
lei”. O poder era exercido por um chefe de família ou de famílias (clã, tribo,
aldeia), cuja autoridade era pessoal e arbitrária, decidindo sobre a vida e a morte
de todos os membros do grupo, sobre a posse e a distribuição das riquezas, a
guerra e a paz, as alianças (em geral sob a forma de casamentos), o proibido e o
permitido.
Embora, de fato, a origem desse poder estivesse na propriedade da terra e dos
rebanhos, sendo chefe o detentor da riqueza, procurava-se garanti-lo contra
revoltas e desobediências afirmando-se uma origem sobrenatural e divina para
ele. Aparecendo como designado pelos deuses e desejado por eles, o detentor do
poder também era detentor do privilégio de relacionar-se diretamente com o
divino ou com o sagrado, concentrando em suas mãos a autoridade religiosa.
Por sua riqueza, autoridade religiosa e posse de armas, o detentor do poder era
também chefe militar, concentrando em suas mãos a chefia dos exércitos e a
decisão sobre a guerra e a paz. Era comandante.
O chefe era um senhor, enfeixando em suas mãos a propriedade do solo e tudo
quanto nele houvesse (portanto, a riqueza do grupo), a autoridade religiosa e
militar, sendo, por isso, rei, sacerdote e capitão.
Com o crescimento demográfico (através das alianças pelos casamentos entre
famílias régias), a expansão territorial (através das guerras de conquista), a
divisão social do trabalho (através da escravização dos vencidos de guerra e das
funções domésticas das mulheres) e os acordos militares e navais entre grupos, a
autoridade, embora concentrada nas mãos do rei, passa a ser delegada por ele a
seus representantes (em geral, membros de sua família e das famílias aliadas).
Surge, assim, uma repartição das funções de direção ou de poder: a casta
sacerdotal detém a autoridade religiosa e a dos guerreiros, a militar. Senhores das
terras, dos escravos, das mulheres, das armas e dos deuses, os grupos detentores
da autoridade formavam a classe dominante economicamente e dirigente da
comunidade, sob o poder do rei, ao qual prestavam juramento de lealdade e
pagavam tributo pelo usufruto das terras pertencentes a ele e por ele cedidas aos
demais.
A propriedade da terra e de seus produtos existia sob duas formas principais:
1. como propriedade privada do rei e, portanto, como domínio pessoal do chefe
ou patriarca. Esse patrimônio ou propriedade patrimonial era cedido, segundo a
vontade arbitrária do rei, aos chefes de clãs e tribos, aos grupos sacerdotais e
militares, mediante serviços e/ou tributos. Em geral, esse tipo de propriedade
prevalecia naquelas regiões em que o cultivo da terra exigia trabalhos imensos de
irrigação e de transporte de água, que um proprietário isolado não poderia
realizar, não só por lhe faltarem recursos para isso como também porque teria
que atravessar terras de outros proprietários, devendo pagar-lhes tributos ou
fazer-lhes guerra. A propriedade, ficando na posse do rei, permitia que este
usasse os recursos vindos dos tributos para as grandes obras de irrigação e
transporte de águas, ao mesmo tempo em que possuía o poder para atravessar
toda e qualquer terra para realizar as obras;
2. como propriedade coletiva das aldeias ou propriedade comunal do chefe da
aldeia, que pagava tributos ao rei em troca de proteção, submetendo-se ao poder
régio e, portanto, à autoridade religiosa e militar do senhor.
Seja num caso como noutro, o rei era forçado a exercer um controle cerrado
sobre as chefias locais e sobre os que usufruíam as terras, pois as rebeliões eram
freqüentes e a disputa pelo poder interminável. Tal controle era feito por
representantes do rei, quando percorriam as terras registrando a produção e
recolhendo tributos, punindo crimes cometidos contra as decisões e decretos
régios, sufocando revoltas e impedindo o surgimento de federações e
confederações de aldeias.
Com isso, o rei passou a ter uma imensa burocracia e imensos exércitos,
custeados pelos chefes locais e suas aldeias. Os funcionários régios precisavam
saber ler, escrever e contar. Nas sociedades de que falamos, tais conhecimentos
eram privilégio de um grupo, os sacerdotes. Por esse motivo, a ênfase no caráter
sagrado ou religioso do poder tendia a aumentar à medida que aumentava o
poderio sacerdotal, sustentáculo indispensável do poder régio. Deuses e armas
eram os pilares da autoridade.
Assim constituído, o poder possuía as seguintes características:
? despótico ou patriarcal: era exercido pelo chefe de família sobre um conjunto
de famílias a ele ligadas por laços de dependência econômica e militar, por
alianças matrimoniais, numa relação pessoal em que o chefe garantia proteção e
os súditos ofereciam lealdade e obediência, jurando cumprir a vontade do
primeiro;
? total : o detentor da autoridade possuía poder supremo inquestionável para
decidir quanto ao permitido e ao proibido (a lei exprime a vontade pessoal do
chefe), para estabelecer os vínculos com o sagrado, isto é, com os deuses e
antepassados (o chefe detém o poder religioso), para decidir quanto à guerra e à
paz (o chefe detém o poder militar). A tomada de decisão cabia exclusivamente
ao rei. Este possuía conselheiros (sacerdotes e militares), que o informavam e lhe
sugeriam condutas e ações, mas a decisão cabia apenas a ele. O conselho era
secreto, os motivos de uma decisão eram secretos, o que se passava entre o rei e
seus conselheiros era secreto. Somente a decisão tornava-se pública, sob a forma
de um decreto real;
? incorporado ou corporificado: o detentor do poder figurava em seu próprio
corpo as características do poder, apresentando-se como manifestação da própria
comunidade. Sua cabeça encarnava a autoridade que dirige, seu peito encarnava a
vontade que ordena, seus membros superiores encarnavam os delegados que o
representavam (sacerdotes e militares), seus membros inferiores encarnavam os
súditos que o obedeciam. Essa figuração do poder no corpo do próprio rei
indicava a existência de uma organização social fortemente hierarquizada, na
qual cada indivíduo possuía um lugar fixo e predeterminado, só tendo existência
social graças a esse lugar. O corpo do rei permitia não só figurar a hierarquia,
mas também a forte centralização da autoridade, concentrada na cabeça e no
peito do dirigente;
? mágico: por receber a autoridade dos deuses, o detentor do poder possuía força
sobrenatural ou mágica. Sua palavra era um comando misterioso que fazia existir
aquilo que era dito (o rei dizia “faça-se” e as coisas aconteciam simplesmente
porque ele as havia dito e desejado); seus gestos e desejos tinham força para
matar e curar, sua maldição destruía tudo quanto fosse amaldiçoado por ele, dele
dependiam a fertilidade da terra, a vitória ou a derrota na guerra, o início ou o fim
de uma peste, fenômenos meteorológicos, cataclismos;
? transcendente: por ser de origem divina, o rei era divinizado e acreditava-se
em sua imortalidade como condição da preservação da comunidade. Essa
divinização o colocava acima e fora da comunidade. Tal separação levava a
considerar que o dirigente ocupava um lugar transcendente, graças ao qual via
tudo, sabia tudo e podia tudo, tendo o império total sobre a comunidade;
? hereditário: era transmitido ao primogênito do rei ou, na falta deste, a um
membro da família real. A família reinante constituía uma linhagem e uma
dinastia, que só findava ou por falta de herdeiros diretos ou por usurpação do
poder por uma outra família, que dava início a uma nova linhagem ou dinastia.
A invenção da política
Quando se afirma que os gregos e romanos inventaram a política, o que se diz é
que desfizeram aquelas características da autoridade e do poder. Embora, nos
começos, gregos e romanos tivessem conhecido a organização econômico-social
de tipo despótico ou patriarcal, um conjunto de medidas foram tomadas pelos
primeiros dirigentes – os legisladores – de modo a impedir a concentração dos
poderes e da autoridade nas mãos de um rei, senhor da terra, da justiça e das
armas, representante da divindade.
A propriedade da terra não se tornou propriedade régia ou patrimônio privado do
rei, nem se tornou propriedade comunal ou da aldeia, mas manteve -se como
propriedade de famílias independentes, cuja peculiaridade estava em não
formarem uma casta fechada sobre si mesma, porém aberta à incorporação de
novas famílias e de indivíduos ou não-proprietários enriquecidos no comércio.
Apesar das diferenças históricas na formação da Grécia e de Roma, há três
aspectos comuns a ambas e decisivos para a invenção da política. O primeiro,
como assinalamos há pouco, é a forma da propriedade da terra; o segundo, o
fenômeno da urbanização; e o terceiro, o modo de divisão territorial das cidades.
Como a propriedade da terra não pertencia à aldeia nem ao rei, mas às famílias
independentes, e como as guerras ampliavam o contingente de escravos, formouse
na Grécia e em Roma uma camada pobre de camponeses que migraram para as
aldeias, ali se estabeleceram como artesãos e comerciantes, prosperaram,
fizeram, das aldeias, cidades, passaram a disputar o direito ao poder com as
grandes famílias agrárias. Uma lut a de classes perpassa a história grega e romana
exigindo solução.
A urbanização significou uma complexa rede de relações econômicas e sociais
que colocava em confronto não só proprietários agrários, de um lado, e artesãos e
comerciantes, de outro, mas também a massa de assalariados da população
urbana, os não-proprietários, genericamente chamados de “os pobres”.
A luta de classes incluía, assim, lutas entre os ricos e lutas entre ricos e pobres.
Tais lutas eram decorrentes do fato de que todos os indivíduos participavam das
guerras externas, tanto para a expansão territorial, quanto para a defesa de sua
cidade, formando as milícias dos nativos da cidade. Essa participação militar
fazia com que todos se julgassem no direito, de algum modo, de intervir nas
decisões econômicas e legais das cidades. A luta das classes pedia uma solução.
Essa solução foi a política.
Finalmente, os primeiros chefes políticos ou legisladores introduziram uma
divisão territorial das cidades que visava a diminuir o poderio das famílias ricas
agrárias, dos artesãos e comerciantes urbanos ricos e à satisfazer a reivindicação
dos camponeses pobres e dos artesãos e assalariados urbanos pobres. Em Atenas,
por exemplo, a polis foi subdividida em unidades sociopolíticas denominadas
demos; em Roma, em tribus.
Quem nascesse num demos ou numa tribus, independentemente de sua situação
econômica, tinha assegurado o direito de participar das decisões da cidade. No
caso de Atenas, todos os naturais do demos tinham o direito de participar
diretamente do poder, donde o regime ser uma democracia. Em Roma, os nãoproprietários
ou os pobres formavam a plebe, que tinha o direito de eleger um
representante – o tribuno da plebe – para defender e garantir os interesses plebeus
junto aos interesses e privilégios dos que participavam diretamente do poder, os
patrícios, que constituíam o populus romanus. O regime político romano era,
assim, uma oligarquia.
Diante do poder despótico, gregos e romanos inventaram o poder político
porque:
? separaram a autoridade pessoal privada do chefe de família – senhorio
patriarcal e patrimonial – e o poder impessoal público, pertencente à
coletividade; separaram privado e público e impediram a identificação do poder
político com a pessoa do governante. Os postos de governo eram preenchidos por
eleições entre os cidadãos, de modo que o poder deixou de ser hereditário;
? separaram autoridade militar e poder civil, subordinando a primeira ao
segundo. Isso não significa que em certos casos, como em Esparta e Roma, o
poder político não fosse também um poder militar, mas sim que as missões
militares deviam ser, primeiro, discutidas e aprovadas pela autoridade política e
só depois realizadas. Os chefes militares não eram vitalícios nem seus cargos
eram hereditários, mas eram eleitos periodicamente pelas assembléias dos
cidadãos;
? separaram autoridade mágico-religiosa e poder temporal laico, impedindo a
divinização dos governantes. Isso não significa que o poder político deixasse de
ter laços com a autoridade religiosa – os oráculos, na Grécia, e os augúrios, em
Roma, eram respeitados firmemente pelo poder político. Significa, porém, que os
dirigentes desejavam a aprovação e a proteção dos deuses, sem que isso
implicasse a divinização dos governantes e a submissão da política à autoridade
sacerdotal;
? criaram a idéia e a prática da lei como expressão de uma vontade coletiva e
pública, definidora dos direitos e deveres para todos os cidadãos, impedindo que
fosse confundida com a vontade pessoal de um governante. Ao criarem a lei e o
direito, afirmaram a diferença entre o poder político e todos os outros poderes e
autoridades existentes na sociedade, pois conferiram a uma instância impessoal e
coletiva o direito exclusivo ao uso da força para punir crimes, reprimir revoltas e
matar para vingar, em nome da coletividade, um delito julgado intolerável por
ela. Em outras palavras, retiraram dos indivíduos o direito de fazer justiça com as
próprias mãos e de vingar por si mesmos uma ofensa ou um crime. O monopólio
da força, da vingança e da violência passou para o Estado, sob a lei e o direito;
? criaram instituições públicas para aplicação das leis e garantia dos direitos, isto
é, os tribunais e os magistrados;
? criaram a instituição do erário público ou do fundo público, isto é, dos bens e
recursos que pertencem à sociedade e são por ela administrados por meio de
taxas, impostos e tributos, impedindo a concentração da propriedade e da riqueza
nas mãos dos dirigentes;
? criaram o espaço político ou espaço público – a assembléia grega e o senado
romano -, no qual os que possuem direitos iguais de cidadania discutem suas
opiniões, defendem seus interesses, deliberam em conjunto e decidem por meio
do voto, podendo, também pelo voto, revogar uma decisão tomada. É esse o
coração da invenção política. De fato, e como vimos, a marca do poder despótico
é o segredo, a deliberação e a decisão a portas fechadas. A política, ao contrário,
introduz a prática da publicidade, isto é, a exigência de que a sociedade conheça
as deliberações e participe da tomada de decisão.
Além disso, a existência do espaço público de discussão, deliberação e decisão
significa que a sociedade está aberta aos acontecimentos, que as ações não foram
fixadas de uma vez por todas por alguma vontade transcendente, que erros de
avaliação e de decisão podem ser corrigidos, que uma ação pode gerar problemas
novos, não previstos nem imaginados, que exigirão o aparecimento de novas leis
e novas instituições. Em outras palavras, gregos e romanos tornaram a política
inseparável do tempo e, como vimos no caso da ética, ligada à noção de possível
ou de possibilidade, isto é, a idéia de uma criação contínua da realidade social.
Para responder às diferentes formas assumidas pelas lutas de classes, a política é
inventada de tal maneira que, a cada solução encontrada, um novo conflito ou
uma nova luta podem surgir, exigindo novas soluções. Em lugar de reprimir os
conflitos pelo uso da força e da violência das armas, a política aparece como
trabalho legítimo dos conflitos, de tal modo que o fracasso nesse trabalho é a
causa do uso da força e da violência.
A democracia ateniense e as oligarquias de Esparta e da república romana
fundaram a idéia e a prática da política na Cultura ocidental. Eis por que os
historiadores gregos, quando a Grécia caiu sob o domínio do império de
Alexandre da Macedônia, e os historiadores romanos, quando Roma sucumbiu ao
domínio do império dos césares, falaram em corrupção e decadência da política:
para eles, o desaparecimento da polis e da res publica significava o retorno ao
despotismo e o fim da vida política propriamente dita.
Evidentemente, não devemos cair em anacronismos, supondo que gregos e
romanos instituíram uma sociedade e uma política cujos valores e princípios
fossem idênticos aos nossos. Em primeiro lugar, a economia era agrária e
escravista, de sorte que uma parte da sociedade – os escravos – estava excluída
dos direitos políticos e da vida política. Em segundo lugar, a sociedade era
patriarcal e, conseqüentemente, as mulheres também estavam excluídas da
cidadania e da vida pública. A exclusão atingia também os estrangeiros e os
miseráveis.
A cidadania era exclusiva dos homens adultos livres nascidos no território da
Cidade. Além disso, a diferença de classe social nunca era apagada, mesmo que
os pobres tivessem direitos políticos. Assim, para muitos cargos, o pré-requisito
da riqueza vigorava e havia mesmo atividades portadoras de prestígio que
somente os ricos podiam realizar. Era o caso, por exemplo, da liturgia grega e do
evergetismo romano, isto é, de grandes doações em dinheiro à cidade para festas,
construção de templos e teatros, patrocínio de jogos esportivos, de trabalhos
artísticos, etc.
O que procuramos apontar não foi a criação de uma sociedade sem classes, justa
e feliz, mas a invenção da política como solução e resposta que uma sociedade
oferece para suas diferenças, seus conflitos e suas contradições, sem escondê-los
sob a sacralização do poder e sem fechar-se à temporalidade e às mudanças.
Sociedade contra o Estado
Examinamos até aqui duas grandes respostas sociais ao poder: a resposta
despótica e a política. Em ambas, a sociedade procura organizar-se
economicamente – a forma da propriedade -, mantendo e mesmo criando
diferenças sociais profundas entre proprietários e não-proprietários, ricos e
pobres, livres e escravo s, homens e mulheres. Essas diferenças engendram lutas
internas, que podem levar à destruição de todos os membros do grupo social.
Para regular os conflitos, determinar limites às lutas, garantir que os ricos
conservem suas riquezas e os pobres aceitem sua pobreza, surge uma chefia que,
como vimos, pode tomar duas direções: ou o chefe se torna senhor das terras,
armas e deuses e transforma sua vontade em lei, ou o poder é exercido por uma
parte da sociedade – os cidadãos -, através de práticas e instituições públicas
fundadas na lei e no direito como expressão da vontade coletiva. Nos dois casos,
surge o Estado como poder separado da sociedade e encarregado de dirigi-la,
comandá-la, arbitrar os conflitos e usar a força. Há, porém, um terceiro caminho.
Fomos acostumados pela tradição antropológica européia a considerar as
sociedades existentes na América como atrasadas, primitivas e inferiores. Essa
visão nasceu do processo de colonização e conquista, iniciado no século XVI. Os
conquistadores e colonizadores que aportaram na América interpretaram as
diferenças entre eles e os nativos americanos como distinção hierárquica entre
superiores e inferiores: para eles os “índios” não tinham lei, rei, fé, escrita,
moeda, comércio, História; eram seres desprovidos dos traços daquilo que, para o
europeu cristão, súdito de monarquias, constituiria a civilização.
Sem dúvida, os conquistadores encontraram grandes impérios na América: incas,
astecas e maias. Por isso, os destruíram a ferro e fogo, exterminando as gentes,
pilhando as riquezas e erigindo igrejas sobre seus templos. Todavia, exceto por
esses impérios destruídos, os conquistadores encontraram as demais nações
americanas organizadas de maneira incompreensível para os padrões europeus.
Transformaram o que eram incapazes de compreender em inferioridade dos
americanos. Considerando-os selvagens e bárbaros, justificavam a escravidão, a
evangelização e o extermínio.
A visão européia, depois compartilhada pelos brancos americanos, era e é
etnocêntrica, isto é, considera padrões, valores e práticas dos brancos adultos
proprietários europeus como universais e definidores da Cultura e da civilização.
Para o etnocentrismo, portanto, os nativos americanos possuíam e possuem
sociedades carentes: falta-lhes o mercado (moeda e comércio), a escrita
(alfabética), a História e o Estado. Possuem, portanto, sociedades sem comércio,
sem escrita, sem memória e sem Estado.
O antropólogo francês Pierre Clastres estudou essas sociedades por um prisma
completamente diferente, longe do etnocentrismo costumeiro. Mostrou que
possuem escrita, mas que esta não é alfabética nem ideográfica ou hieroglífica
(isto é, não é a escrita conhecida pelos ocidentais e orientais), mas é simbólica,
gravada nos corpos das pessoas por sinais específicos, inscrita com sinais
específicos em objetos determinados e em espaços determinados. Somos nós que
não sabemos lê-la.
Mostrou também que possuem memória – mitos e narrativas dos povos -,
transmitida oralmente de geração em geração, transformando-se de geração em
geração. Mostrou, pelas mudanças na escrita e na memória, que tais sociedades
possuem História, mas que esta é inseparável da relação dos povos com a
Natureza, diferentemente da nossa História, que narra como nos separamos da
Natureza e como a dominamos. Mas, sobretudo, mostrou por que e como tais
sociedades são contra o mercado e contra o Estado. Em outras palavras, não são
sociedades sem comércio e sem Estado, mas contrárias a eles.
As sociedades indígenas estudadas por Clastres são sul-americanas, encontrandose
num estágio anterior ao das sociedades indígenas da América do Norte e dos
três grandes impérios situados no México, na América Central e no norte da
América do Sul. São, portanto, sociedades que não se organizaram na forma das
chefias norte-americanas nem dos grandes impérios, mas inventaram uma
organização deliberada para evitar aquelas duas formas de poder.
As sociedades indígenas são tribais ou comunais. Nelas, não há propriedade
privada nem divisão social do trabalho, não havendo, portanto, classes sociais
nem luta de classes. A propriedade é tribal ou comum e o trabalho se divide por
sexo e idade. São comunidades no sentido pleno do termo, isto é, são
internamente homogêneas, unas e indivisas, possuindo uma História e um destino
comuns. São sociedades do cara-a-cara, onde todos se conhecem pelo nome e são
vistos uns pelos outros diariamente.
Por isso mesmo, nelas o poder não se destaca nem se separa, não forma uma
instância acima dela (como na política), nem fora dela (como no despotismo). A
chefia não é um poder de mando a que a comunidade obedece. O chefe não
manda; a comunidade não obedece. A comunidade decide para si mesma, de
acordo com suas tradições e necessidades.
A oposição se estabelece não no interior da comunidade, mas em seu exterior,
isto é, nas relações com as outras comunidades, portanto, no que se refere à
guerra e às alianças de sangue pelo casamento. A função da chefia é representar a
comunidade perante outras comunidades.
O que é e o que faz o chefe, uma vez que não tem a função do poder, pois este
pertence à comunidade e dela não se separa? O chefe possui três funções: doar
presentes, fazer a paz e falar.
Exprimindo a benevolência dos deuses e a prosperidade da comunidade, o chefe
deve, em certos períodos, oferecer presentes a todos os membros da tribo, isto é,
devolver a ela o que ela mesma produziu. A doação de presentes é a maneira
deliberada que a comunidade inventou para impedir que alguém possa
concentrar bens e riquezas, tornar-se proprietário privado, criar desigualdade
econômica e social, de onde surgem a luta de classes e a necessidade do poder do
Estado.
Quando famílias ou indivíduos entram em conflito, o chefe deve intervir. Não
dispõe de códigos legais para arbitrar o conflito em nome da lei. Que faz ele? A
paz. Como a obtém? Apelando para o bom senso das partes, aos bons
sentimentos, à memória da comunidade, à tradição do bom convívio entre as
pessoas. Em suma, através dele a comunidade fala para reafirmar-se como
comunidade indivisa.
Excetuando-se a doação de presentes, a paz entre membros da comunidade, a
diplomacia para tratar com outras comunidades aliadas e o direito a usar a força,
liderando os guerreiros durante a guerra, a grande função da chefia situa-se na
fala ou na Grande Palavra. Todas as tardes, o chefe se dirige a um local distante
da aldeia, mas visível e de onde possa ser ouvido, e ali discursa. Embora ouvido,
ninguém deve dar-lhe atenção e o que ele diz não é ordem ou comando obrigando
à obediência. Que diz ele? Diz a palavra do poder: canta sua força e coragem, seu
prestígio, sua relação com os deuses, seus grandes feitos. Mas ninguém lhe dá
atenção. Ninguém o escuta.
A Grande Palavra tem significado simbólico: a comunidade lembra a si mesma,
diariamente, o risco e o perigo que correria se possuísse um chefe que lhe desse
ordens e ao qual devesse obedecer. A Grande Palavra simboliza a maneira pela
qual a comunidade impede o advento do poder como algo separado dela e que a
comandaria pela coerção da lei e das armas. Com a cerimônia da Grande Palavra,
a sociedade se coloca contra o surgimento do Estado.
Toda vez que o chefe não realiza as três funções internas e a função externa tais
como a comunidade as define, todas as vezes que pretende usar suas funções para
criar o poder separado, ele é morto pela comunidade.
Evidentemente, nossa tendência será dizer que tal organização é própria de povos
pouco numerosos e de uma vida sócio-econômica muito simples, parecendo-nos,
a nós, membros de sociedades complexas e de classes, uma vaga lembrança
utópica. Pierre Clastres, porém, indaga: Por que outras comunidades, mundo
afora, não foram capazes de impedir o surgimento da propriedade privada, das
divisões sociais de castas e classes, das desigualdades que resultaram na
necessidade de criar o poder separado, seja como poder despótico, seja como
poder político? Por que, afinal, os homens sucumbiram à necessidade de criar o
Estado como poder de coerção social?
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