A VIDA POLITICA
Marilena Chauí
Paradoxos da política
Não é raro ouvirmos dizer que “lugar de estudante é na sala de aula e não na rua,
fazendo passeata” ou “estudante estuda, não faz política”. Mas também ouvimos
o contrário, quando alguém diz que “os estudantes estão alienados, não se
interessam por política”. No primeiro caso, considera-se a política uma atividade
própria de certas pessoas encarregadas de fazê-la – os políticos profissionais -,
enquanto no segundo caso, considera-se a política um interesse e mesmo uma
obrigação de todos. Assim, um primeiro paradoxo da política faz aqui sua
aparição: é ela uma atividade específica de alguns profissionais da sociedade ou
concerne a todos nós, porque vivemos em sociedade?
Como se observa, usamos a palavra política ora para significar uma atividade
específica – o governo -, realizada por um certo tipo de profissional – o político -,
ora para significar uma ação coletiva – o movimento estudantil nas ruas – de
reivindicação de alguma coisa, feita por membros da sociedade e dirigida aos
governos ou ao Estado. Afinal, a política é uma profissão entre outras ou é uma
ação que todos os indivíduos realizam quando se relacionam com o poder? A
política se refere às atividades de governo ou a toda ação social que tenha como
alvo ou como interlocutor o governo ou o Estado?
No entanto, podemos usar a palavra política ainda noutro sentido.
De fato, freqüentemente, encontramos expressões como “política universitária”,
“política da escola”, “política do hospital”, “política da empresa”, “política
sindical”. Nesse conjunto de expressões, já não encontramos a referência ao
governo nem a profissionais da política. “Política universitária” e “política da
escola” referem-se à maneira como uma instituição de ensino (pública ou
privada) define sua direção e o modo de participação ou não de professores e
estudantes em sua gestão, ao modo como os recursos serão empregados, ao
currículo, às formas de avaliação dos alunos e professores, ao tipo de pessoa que
será recebida como estudante ou como docente, à carreira dos docentes, aos
salários, e, se a instituição for privada, ao custo das mensalidades e matrículas,
etc.
Em sentido próximo a esse fala-se de “política do hospital”. Já “política da
empresa” refere-se ao modo de organização e divisão de poderes relativos aos
investimentos e aos lucros de uma empresa, à distribuição dos serviços, à divisão
do trabalho, às decisões sobre a produção e a distribuição dos produtos, às
relações com as outras empresas, etc. “Política do sindicato” refere-se à maneira
de preencher os cargos de direção sindical, às formas de representação e
participação dos sindicalizados na direção do sindicato, aos conteúdos e às
formas das reivindicações e lutas dos sindicalizados em face de outros poderes,
etc.
Podemos, então, indagar: Afinal, o que é a política? É a atividade de governo? É
a administração do que é público? É profissão de alguns especialistas? É ação
coletiva referida aos governos? Ou é tudo que se refira à organização e à gestão
de uma instituição pública ou privada? No primeiro caso (governo e
administração), usamos “política” para nos referirmos a uma atividade que exige
formas organizadas de gestão institucional e, no segundo caso (gestão e
organização de instituições), usamos “política” para nos referirmos ao fato de que
organizar e gerir uma instituição envolve questões de poder. Em resumo: Política
diz respeito a tudo quanto envolva relações de poder ou a tudo quanto envolva
organização e administração de grupos?
Como veremos posteriormente, o crescimento das atribuições conferidas aos
governos, sob a forma do Estado, levou a uma ampliação do campo das
atividades políticas, que passaram a abranger questões administrativas e
organizacionais, decisões econômicas e serviços sociais. Essa ampliação acabou
levando a um uso generalizado da palavra política para referir-se a toda
modalidade de direção de grupos sociais que envolva poder, administração e
organização.
Podemos, assim, distinguir entre o uso generalizado e vago da palavra política e
um outro, mais específico e preciso, que fazemos quando damos a ela três
significados principais inter-relacionados:
1. o significado de governo, entendido como direção e administração do poder
público, sob a forma do Estado. O senso comum social tende a identificar
governo e Estado, mas governo e Estado são diferentes, pois o primeiro diz
respeito a programas e projetos que uma parte da sociedade propõe para o todo
que a compõe, enquanto o segundo é formado por um conjunto de instituições
permanentes que permitem a ação dos governos.
Ao Estado confere-se autoridade para gerir o erário ou fundo público por meio de
impostos, taxas e tributos, para promulgar e aplicar as leis que definem os
costumes públicos lícitos, os crimes, bem como os direitos e as obrigações dos
membros da sociedade. Também se reconhece como autoridade do governo ou
do Estado o poder para usar a força (polícia e exército) contra aqueles que forem
considerados inimigos da sociedade (criminosos comuns e criminosos políticos).
Confere-se igualmente ao governo ou ao Estado o poder para decretar a guerra e
a paz. Exige-se dos membros da sociedade obediência ao governo ou ao Estado,
mas reconhece-se o direito de resistência e de desobediência quando a sociedade
julga o governo ou mesmo o Estado injusto, ilegal ou ilegítimo.
A política, neste primeiro sentido, refere-se, portanto, à ação dos governantes que
detêm a autoridade para dirigir a coletividade organizada em Estado, bem como
às ações da coletividade em apoio ou contrárias à autoridade governamental e
mesmo à forma do Estado;
2. o significado de atividade realizada por especialistas – os administradores – e
profissionais – os políticos -, pertencentes a um certo tipo de organização
sociopolítica – os partidos -, que disputam o direito de governar, ocupando
cargos e postos no Estado. Neste segundo sentido, a política aparece como algo
distante da sociedade, uma vez que é atividade de especialistas e profissionais
que se ocupam exclusivamente com o Estado e o poder. A política é feita “por
eles” e não “por nós”, ainda que “eles” se apresentem como representantes
“nossos”;
3. o significado, derivado do segundo sentido, de conduta duvidosa, não muito
confiável, um tanto secreta, cheia de interesses particulares dissimulados e
freqüentemente contrários aos interesses gerais da sociedade e obtidos por meios
ilícitos ou ilegítimos. Este terceiro significado é o mais corrente para o senso
comum social e resulta numa visão pejorativa da política. Esta aparece como um
poder distante de nós (passa-se no governo ou no Estado), exercido por pessoas
diferentes de nós (os administradores e profissionais da política), através de
práticas secretas que beneficiam quem as exerce e prejudicam o restante da
sociedade. Fala-se na política como “mal necessário”, que precisamos tolerar e
do qual precisamos desconfiar. A desconfiança pode referir-se tanto aos atuais
ocupantes dos postos e cargos políticos, quanto a grupos e organizações que lhes
fazem oposição e pretendem derrubá-los, seja para ocupar os mesmos postos e
cargos, seja para criar um outro Estado, através de uma revolução sócioeconômica
e política.
Onde está o paradoxo? Na divergência entre o primeiro e o terceiro sentido da
palavra política, pois o primeiro se refere a algo geral, que concerne à sociedade
como um todo, definindo leis e costumes, garantindo direitos e obrigações,
criando espaço para contestações através da reivindicação, da resistência e da
desobediência, enquanto o terceiro sentido afasta a política de nosso alcance,
fazendo-a surgir como algo perverso e maléfico para a sociedade. A divergência
entre o primeiro e o terceiro é provocada pelo segundo significado, isto é, aquele
que reduz a política à ação de especialistas e profissionais.
Essa situação paradoxal da política acaba por fazer-nos aceitar como óbvias e
verdadeiras certas atitudes e afirmações que, se examinadas mais a fundo, seriam
percebidas como absurdas.
Tomemos um exemplo recente da história da política do País. Em 1993, durante
o julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), do pedido do ex-presidente
da república, Fernando Collor de Mello, de não-suspensão de seus direitos
políticos, ouvimos, em toda a parte, a afirmação de que o Poder Judiciário (do
qual o Supremo Tribunal Federal é o órgão mais alto) só teria sua dignidade
preservada se o julgamento do pedido não fosse um “julgamento político”.
Onde está o paradoxo? No fato de que a república brasileira é constituída por três
poderes políticos – executivo, legislativo, judiciário -, e, portanto, o Supremo
Tribunal Federal, sendo um poder político da República (um poder do Estado),
não pode ficar fora da política. Que sentido, portanto, poderia ter a idéia de que o
órgão mais alto do Poder Judiciário não deve julgar politicamente? Como desejar
que um poder do Estado, portanto, um poder político, aja fora da política?
Mais paradoxal, ainda, foi o modo como os juízes, após o julgamento, avaliaram
seu próprio trabalho, dizendo: “Foi um julgamento legal e não político”. Ora (e
nisso reside o paradoxo), a lei não é feita pelo Poder Legislativo? Não é parte da
Constituição da República? Não é parte essencial da política? Como, então,
separar o legal e o político, se a lei é uma das formas fundamentais da ação
política?
Na verdade, quando se insistia em que o julgamento “não fosse político” e se
elogiava o julgamento por “ter sido apenas legal ”, o que estava sendo
pressuposto por todos (sociedade e juízes) era a identificação costumeira entre
política e interesses particulares escusos, contrários aos da maioria, que por isso
deve ser protegida pela lei contra a política. O paradoxo está no fato de que uma
forma essencial da política – a lei – aparece como proteção contra a própria
política.
Uma outra afirmação que aceitamos tranqüilamente é aquele que acusa e critica
uma greve, declarando que se trata de “greve política”. É curioso que usemos,
sem problema, a expressão “política sindical” e, ao mesmo tempo, a
condenemos, criticando uma greve sob a alegação de ser “política”.
Em certos casos, é compreensível o paradoxo. Quando, por exemplo, se trata de
trabalhadores de uma fábrica de automóveis que, em nome de melhores salários,
entram em greve contra a direção da empresa, compreende-se que a greve seja
considerada “simplesmente econômica”. Ao criticá-la como “greve política”
está-se, como sempre, querendo dizer que os grevistas, sob a aparência de uma
reivindicação salarial, estariam defendendo interesses particulares escusos e
ilegítimos, ou buscando, dissimuladamente, vantagens e poderes para alguns
sindicalistas. A palavra política é, assim, empregada para dar um sentido
pejorativo à greve.
Há casos, porém, em que a expressão “greve política”, usada como crítica ou
acusação, é surpreendente. Suponhamos, por exemplo, que os trabalhadores de
um país façam uma greve geral contra o plano econômico do governo. Estão,
portanto, recusando uma política econômica e, nesse caso, a greve é e só pode
ser política. Por que, então, acusar uma greve por ela ser o que ela é? O motivo é
simples: para o senso comum social, dizer de alguma coisa que ela é “política” é
fazer uma acusação. A crítica só em aparência está dirigida contra a greve, pois,
realmente, está voltada contra a política, imaginada como algo maléfico.
Essa visão generalizada da política como algo perverso, perigoso, distante de nós
(passa-se no Estado), praticado por “eles” (os políticos profissionais) contra
“nós”, sob o disfarce de agirem “por nós”, faz com que seja sentida como algo
secreto e desconhecido, uma conduta calculista e oportunista, uma força corrupta
e, através da polícia, uma força repressora usada contra a sociedade. Essa
imagem da política como um poder do qual somos vítimas tolerantes, que
consentem a violência, é paradoxal pelo menos por dois motivos principais.
Em primeiro lugar, porque a política foi inventada pelos humanos como o modo
pelo qual pudessem expressar suas diferenças e conflitos sem transformá-los em
guerra total, em uso da força e extermínio recíproco. Numa palavra, como o
modo pelo qual os humanos regulam e ordenam seus interesses conflitantes, seus
direitos e obrigações enquanto seres sociais. Como explicar, então, que a política
seja percebida como distante, maléfica e violenta?
Em segundo lugar, porque a política foi inventada como o modo pelo qual a
sociedade, internamente dividida, discute, delibera e decide em comum para
aprovar ou rejeitar as ações que dizem respeito a todos os seus membros. Como
explicar, então, que seja percebida como algo que não nos concerne, mas nos
prejudica, não nos favorece, mas favorece aos interesses escusos e ilícitos de
outros?
Que aconteceu a essa invenção humana para tornar-se, paradoxalmente, um fardo
de que gostaríamos de nos livrar?
Cotidianamente, jornais, rádios, televisões mostram, no mundo inteiro, fatos
políticos que reforçam a visão pejorativa da política: corrupção, fraudes, crimes
impunes praticados por políticos, mentiras provocando guerras para satisfazer aos
interesses econômicos dos fabricantes de armamentos, desvios de recursos
públicos que deveriam ser usados contra a fome, as doenças, a pobreza, aumento
das desigualdades econômicas e sociais, uso das leis com finalidades opostas aos
objetivos que tiveram ao ser elaboradas, etc.
Ao lado desses fatos, não passa um dia sem que saibamos o modo desumano,
autoritário, violento com que funcionários públicos, cujo salário é pago por nós
(através de impostos), tratam a população que busca os serviços públicos.
Também contribui para a visão negativa da política a maneira como as leis estão
redigidas, tornando-se incompreensíveis para a sociedade e exigindo que sejam
interpretadas por especialistas, sem que tenhamos garantia de que as interpretam
corretamente, se o fazem em nosso favor ou em favor de privilégios escondidos.
O que é curioso, porém, aumentando nossa percepção da política como algo
paradoxal, é o fato de que só podemos opor-nos a tais fatos e lutar contra eles
através da própria política, pois mesmo quando se faz uma guerra civil ou se
realiza uma revolução, os motivos e objetivos são a política, isto é, mudanças na
forma e no conteúdo do poder. Mesmo as utopias de emancipação do gênero
humano contra todas as modalidades de servidão, escravidão, autoritarismo,
violência e injustiça concebem o término de poderes ilegítimos, mas não o
término da própria política.
As pessoas que, desgostosas e decepcionadas, não querem ouvir falar em
política, recusam-se a participar de atividades sociais que possam ter finalidade
ou cunho políticos, afastam-se de tudo quanto lembre atividades políticas,
mesmo tais pessoas, com seu isolamento e sua recusa, estão fazendo política,
pois estão deixando que as coisas fiquem como estão e, portanto, que a política
existente continue tal qual é. A apatia social é, pois, uma forma passiva de fazer
política.
O vocabulário da política
O historiador helenista Moses Finley, estudando as sociedades grega e romana,
concluiu que o que chamamos de política foi inventado pelos gregos e romanos.
Antes de examinarmos o que foi tal invenção, já podemos compreender a origem
greco-romana do que chamamos de política pelo simples exame do vocabulário
usado em política: democracia, aristocracia, oligarquia, tirania, despotismo,
anarquia, monarquia são palavras gregas que designam regimes políticos;
república, império, poder, cidade, ditadura, senado, povo, sociedade, pacto,
consenso são palavras latinas que designam regimes políticos, agentes políticos,
formas de ação política.
A palavra política é grega: ta politika, vinda de polis.
Polis é a Cidade, entendida como a comunidade organizada, formada pelos
cidadãos (politikos), isto é, pelos homens nascidos no solo da Cidade, livres e
iguais, portadores de dois direitos inquestionáveis, a isonomia (igualdade perante
a lei) e a isegoria (o direito de expor e discutir em público opiniões sobre ações
que a Cidade deve ou não deve realizar).
Ta politika são os negócios públicos dirigidos pelos cidadãos: costumes, leis,
erário público, organização da defesa e da guerra, administração dos serviços
públicos (abertura de ruas, estradas e portos, construção de templos e
fortificações, obras de irrigação, etc.) e das atividades econômicas da Cidade
(moeda, impostos e tributos, tratados comerciais, etc.).
Civitas é a tradução latina de polis, portanto, a Cidade como ente público e
coletivo. Res publica é a tradução latina para ta politika, significando, portanto,
os negócios públicos dirigidos pelo populus romanus, isto é, os patrícios ou
cidadãos livres e iguais, nascidos no solo de Roma.
Polis e civitas correspondem (imperfeitamente) ao que, no vocabulário político
moderno, chamamos de Estado: o conjunto das instituições públicas (leis, erário
público, serviços públicos) e sua administração pelos membros da Cidade.
Ta politika e res publica correspondem (imperfeitamente) ao que designamos
modernamente por práticas políticas, referindo-se ao modo de participação no
poder, aos conflitos e acordos na tomada de decisões e na definição das leis e de
sua aplicação, no reconhecimento dos direitos e das obrigações dos membros da
comunidade política e às decisões concernentes ao erário ou fundo público.
Dizer que os gregos e romanos inventaram a política não significa dizer que,
antes deles, não existiam o poder e a autoridade, mas sim que inventaram o poder
e a autoridade políticos propriamente ditos. Para compreendermos o que se
pretende dizer com isso, convém examinarmos como era concebido e praticado o
poder nas sociedades não greco-romanas.
In: Marilena Chaui. Um convite a filosofia.
2 comentários:
adorei,ter lido aqui,pois no livro a leitura se torna mais cansativa,obrigado!!!!!!!!!!!!
Existe um erro no texto, "aumentar a desigualdade econômica". Não seria diminuir?
Att,
Fernanda.
Postar um comentário